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São João de Campina Grande como megaevento: imbricamento entre sistema e mundo da vida na mercadorização da cultura

São João in Campina Grande as a mega-event: Imbrication between system and lifeworld in the commodification of culture

André Luiz Maranhão de Souza Leão

Professor Adjunto da Universidade Federal de Pernambuco.

Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal de Pernambuco (Propad/UFPE).

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orcid.org/0000-0002-7660-5845

aleao21@hotmail.com

 

João Gabriel de Lima Perdigão

Professor Assistente da Universidade Federal Rural de Pernambuco.

Mestre pelo Mestrado Profissional em Administração da Universidade Federal de Pernambuco (MPA/UFPE).

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orcid.org/0000-0001-7122-4341

joaogabrielperdigao@gmail.com

 

Suélen Matozo Franco

Professora da Uninassau.

Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal de Pernambuco (Propad/UFPE).

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orcid.org/0000-0001-7835-9257

suelenmfranco@gmail.com

 

Bruno Rafael Torres Ferreira

Professor da IBGM.

Doutorado em andamento no Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal de Pernambuco (Propad/UFPE).

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orcid.org/0000-0003-1719-2750

brunortferreira@gmail.com

 

Resumo: Um dos maiores eventos do Brasil, o São João de Campina Grande incorporou elementos modernos ao seu caráter cultural e regional, adquirindo contornos de espetáculo, em um processo de “mercadorização” da cultura. Tal aspecto remete-nos à discussão de esfera pública proposta por Jürgen Habermas, cuja abordagem aponta para a concepção dualista entre sistema e mundo da vida. Com o intuito de analisar como o mundo da vida e o sistema coexistem no São João de Campina Grande, realizamos a presente pesquisa, de abordagem crítica, por meio de entrevistas em profundidade com quatro grupos de agentes envolvidos na organização do megaevento. Nossos achados apontam para uma clara primazia da ação estratégica, na qual o consenso do espaço público tende a se diluir nos imperativos políticos e mercadológicos implicados na “profissionalização” de um festejo que nasce na esfera pública.

Palavras-chave: São João de Campina Grande. Sistema. Mundo da vida. Esfera pública. Paradigma crítico.

 

Abstract: As one of the largest events in Brazil, the São João in Campina Grande has incorporated modern elements into its cultural and regional character, acquiring the shape of a spectacle, in the process of commodification of culture. This aspect leads us to the discussion of public sphere proposed by Jürgen Habermas, whose approach points to the dualistic conception of system and lifeworld. In order to analyze how lifeworld and system coexist in the São João celebration in Campina Grande, we perform this critical research, through in-depth interviews with four groups of agents involved in the organization of the event. Our findings point to the clear prioritization of strategic action, in which the consensus of public space tends to be diluted in the political and marketing imperatives involved in the "professionalization" of a celebration that is born in the public sphere.

Keywords: São João celebration. Campina Grande. System. Lifeworld. Public sphere. Critical paradigm.

 

Texto completo em português: http://www.apgs.ufv.br

Full text in Portuguese: http://www.apgs.ufv.br

 


Introdução

Considerado o maior evento do estado da Paraíba (Pbtur, 2012) e um dos maiores do Brasil (Embratur, 2012), a festa junina de Campina Grande, com título de “O Maior São João do Mundo”, nasceu em 1983 e cresceu exponencialmente, culminando com sua inclusão no calendário de eventos do Instituto Brasileiro de Turismo ­– Embratur. Suas origens remontam ao início do século XX, em festas familiares em que parentes, vizinhos e amigos promoviam um congraçamento com fogueira, balões, fogos de artifícios e comidas à base de milho, em sítios e em granjas. Na cidade, a comemoração dava-se nos bailes em clubes ou assistindo à queima de fogueiras em casa. As palhoças e a contratação dos grupos musicais surgiram entre as décadas de 1930 e 1940, seguidas das primeiras quadrilhas juninas (Lima, 2008).

O ano de 1976 representa um marco, pois assinala a institucionalização do festejo junino no perímetro urbano, com a organização assumida pelo Poder Público (Lima, 2008). Trata-se da primeira ruptura, dando início às transformações que transformariam a festa católica introduzida pelos portugueses no Brasil em um evento turístico de grande porte e, ao mesmo tempo, gerido sob o pretexto de política de desenvolvimento econômico e social. O resultado é um festejo híbrido, no qual quadrilhas mesclam outros elementos cênicos e musicais, a gastronomia típica funde-se aos pratos de fast-food e, ao mesmo tempo, evocam-se traços de uma festa “tradicional” no intuito de não frustrar as expectativas do turista que busca essa “tradição”.

O nascimento do São João de Campina Grande e seu percurso até a institucionalização da festa junina como incumbência do Estado remete-nos à discussão de esfera pública proposta por Jürgen Habermas, que analisa as tensões e transformações culturais decorrentes do avanço do capitalismo (Oliveira, Cançado, & Pereira, 2010). A esfera pública emerge como um local de discussão de temas de interesse geral e formação de opiniões, no qual a resolução de questões políticas se dá pela discussão pública entre indivíduos em igualdade (Fossá & Pinto, 2011). Sua origem remete à vitória burguesa sobre os regimes absolutistas, trazendo para a burguesia a participação política e a mediação da relação Estado-sociedade civil, pautada por interesses racionais dessa classe (Goulart & Farias, 2012). Essa esfera, burguesa em sua gênese, pressionaria o poder decisório do Estado em suas políticas públicas (Oliveira, Cançado, & Pereira, 2010).

O avanço da abordagem habermasiana aponta para uma concepção dualista da sociedade, na qual insere a distinção entre sistema e mundo da vida (sendo o primeiro orientado por concepções teleológicas e este último, pelo consenso e entendimento) e incorpora a esfera pública na abordagem da ação comunicativa. A esfera pública passa a incumbir-se da preservação do mundo da vida e de suas tradições diante das demandas do sistema (Lubenow, 2007). A razão comunicativa, intersubjetiva e inacabada, orientaria as discussões na esfera pública, sem qualquer tipo de coação, discutindo os interesses de uma coletividade perante um Estado cujo agir é estratégico e pressupõe a incapacidade decisória dos cidadãos (Hansen, Pereira, Silva, Blanco, & Kale, 2012).

A apropriação do festejo junino pela Administração Pública, como algo de sua responsabilidade, gera uma série de inquietações, sobretudo no que diz respeito à preservação do patrimônio cultural. Essa discussão dá-se num momento em que o mercado se configura como espaço de legitimação na sociedade, convertendo tudo em mercadoria (Firat & Dholakia, 2003). De acordo com Farias (2005), a Administração Pública e a iniciativa privada sintonizam-se, inserindo práticas lúdicas e religiosas num circuito cosmopolita, em que as práticas significativas são legitimadas e viabilizadas cada vez mais pelos poderes locais, em seus atravessamentos político-econômicos e culturais e em sua vinculação ao ramo comercial do turismo. Isso resulta num processo de mercadorização da cultura.

Nesse contexto, é pertinente questionar: como o mundo da vida e o sistema coexistem no São João de Campina Grande? O presente artigo parte de um breve histórico de como o São João de Campina Grande converteu-se em megaevento, seguido dos procedimentos metodológicos adotados. O aporte teórico surge antes da descrição dos resultados, como uma orientação para a interpretação dos dados. Por fim, apresentamos os resultados, já discutidos à luz da teoria, e tecemos as considerações finais.

 

Da Tradição ao “Maior São João do Mundo”

Foi por meio dos colonizadores portugueses que a celebração junina foi disseminada no país e que, por coincidir com a colheita do milho, foi interpretada como uma festa rural (Lima, 2013). Principalmente na Região Nordeste, a tradição da festa permanece nos dias atuais, nas ruas, igrejas ou escolas, extrapolando as três datas comemorativas — a de Santo Antônio, São João e São Pedro, nos dias 13, 24 e 29, respectivamente — e estendendo-se por todo o mês de junho (Gobbi, 2007).

Em Campina Grande, os primeiros registros mostram um festejo familiar, organizado em fazendas e granjas das proximidades e também em casas e em clubes da cidade, a exemplo do Clube dos Caçadores, do Campinense e do Clube 31; mas é entre as décadas de 1930 e 1970 que o São João campinense ganha ares de festa de rua, quando surgem os espaços públicos organizados com palhoças, músicos e venda de comidas típicas, além da apresentação das quadrilhas juninas (Lima, 2008).

A esfera pública assume, então, a organização da festa, via órgãos criados para tal fim. É na década de 1980 que a festa passa a ser intitulada “O Maior São João do Mundo” e começa a ganhar as características de como é conhecida atualmente, assumindo caráter de “espetáculo” (Gobbi, 2007; Lucena, 2009; Nóbrega, 2007). Neste processo, em 1985, a Embratur insere a festa no calendário turístico do país (Nóbrega, 2007; Souza & Borges, 2010). O espaço da cidade para a festa é desenvolvido e, em 1986, são inaugurados o Parque do Povo e o Forródromo, visando a criar um espaço centralizado para o evento, o qual, hoje, conta com 42 mil metros quadrados (Nóbrega, 2007).

Com o evento, a economia local é aquecida, uma vez que envolve uma ampla cadeia de serviços da cidade, desde agências de turismo, bares, restaurantes e taxistas, até emissoras de rádio e TV (ACCG, 2012). Esse evento ilustra o modo pelo qual o planejamento urbano é visto e executado, visando à transformação da cidade em mercadoria, dentro de um mercado global — e, nesse processo de transformação, a necessidade de um consenso se mostra como o único modelo viável que faz uso do city marketing quando uma “cidade-mercadoria” visa a alcançar um grau maior de competitividade, principalmente quando o que está em questão é o “desafio” de sediar megaeventos (Vainer, 2010).

Neste cenário, o desenvolvimento do São João de Campina Grande modifica o modo como o evento é entendido, se considerado sob um ponto de vista cultural. Na organização de megaeventos, torna-se possível observar a relação entre a cultura e uma economia de símbolos e de espaço, na qual elementos simbólicos ligados a práticas lúdico-artísticas são recriados, ao mesmo tempo em que temos a mistura do tradicional/moderno e do local/global. Temos, então, festejos regionais integrados a uma ordem de mercado do espetáculo (Farias, 2005).

 

O Mundo da Vida e o Sistema no Pensamento Habermasiano

O paradigma moderno assenta-se num projeto cujos objetivos — regulação da vida social e emancipação do homem e da sociedade — figuram uma tensão, tendo o primeiro prevalecido (Plastino, 2001). Tendo a modernidade seu principal vetor no capitalismo (Kumar, 2005), o ideal da razão foi submetido ao da dominação, conforme assumem pensadores da Escola de Frankfurt, como Adorno, Horkheimer, Marcuse e Habermas (Sousa, Saldanha, & Ichicawa, 2004; Vasconcelos, Pesqueux, & Cyrino, 2014).

Jürgen Habermas é considerado um dos principais herdeiros da Escola de Frankfurt, e sua proposta de busca de emancipação pela razão fornece as bases para o enriquecimento da teoria administrativa, propondo abordagens alternativas à tradicional (Vizeu, 2005). Dentre suas contribuições, destacamos, para o presente estudo, as concepções de esfera pública, de mundo da vida e sistema e de ação comunicativa.

A concepção de esfera pública burguesa na abordagem habermasiana possibilita analisar tensões decorrentes do modelo capitalista, na medida em que articula vetores como política e economia (Oliveira, Cançado, & Pereira, 2010). Passados mais de cinquenta anos dessa abordagem, ela ainda propicia reflexões profícuas em áreas como educação, gestão e economia (Hansen, Pereira, Silva, Blanco, & Kale, 2012). O conceito de esfera pública está intimamente ligado à formação da burguesia, constituindo-se por espaços frequentados pela classe burguesa, bem como a imprensa, descartando a chamada “esfera pública plebeia”, por ser esta incapaz de participar do debate político, na medida em que não dispõe de opinião própria, apenas replica a da classe dominante (Pereira, 2011).

A primazia dos interesses burgueses advém da consolidação dessa classe enquanto mediadora[A1] [A2]  da relação entre o Estado e os cidadãos, num momento em que a emergência de uma burguesia esclarecida configura-se como um contrapeso à autoridade política do Estado moderno (Goulart & Farias, 2012). Em sua abordagem, Habermas traça um histórico da esfera pública desde a antiguidade, mas destaca a emergência do Estado moderno e o capitalismo mercantil como marcos da esfera púbica de caráter burguês (Oliveira, Cançado, & Pereira, 2010; Goulart & Farias, 2012). Dessa forma, não podemos pensar a ação política da esfera pública sem a associar a interesses de classe (Pereira, 2011).

De acordo com Lubenow (2007), se num primeiro momento Habermas analisa a esfera pública sob um enfoque histórico, desloca-se [A3] [A4] posteriormente um novo quadro teórico, fundamentado na ação comunicativa e numa concepção dualista de sociedade: assim, discute a distinção entre mundo da vida e sistema enquanto domínios diferentes e estruturantes da vida em sociedade, bem como evoca o quadro teórico da ação comunicativa para análise da esfera pública.

Em sua Teoria da Ação Comunicativa (TAC), Habermas busca explicar a relação entre os seres humanos pelo diálogo, partindo de categorias básicas, como: o mundo da vida, os subsistemas regidos pelo poder ou pela moeda e as relações entre o mundo da vida e os subsistemas (Gutierrez & Almeida, 2013). O mundo da vida constitui um local de consenso, certezas pré-reflexivas, um acervo cultural de concordâncias, isento de debates, cuja estrutura é natural. O sistema constitui uma dimensão normativa, cujos subsistemas (poder e moeda) buscam maximizar-se em detrimento da comunicação, resultando na chamada colonização do mundo da vida (Leão & Mello, 2008; Gutierrez & Almeida, 2013; Vizeu, 2005; Zwick, Silva, & Brito, 2014). Nesse sentido, a ação comunicativa está para o mundo da vida, assim como a ação instrumental está para os subsistemas poder e moeda, que, ao colonizarem o mundo da vida, empobrecem-no e implicam uma violência (Gutierrez & Almeida, 2013).

Segundo Habermas (1990), a ação comunicativa difere da estratégica na medida em que esta última depende da racionalidade teleológica, enquanto a primeira volta-se para o entendimento, a busca de um consenso obtido comunicativamente, que coordena a ação guiada por pretensões de validade. Isso, contudo, não implica assumir que a ação comunicativa não possua uma finalidade, mas essa finalidade não é o sucesso, e sim o entendimento[A5] [A6] . As pretensões de validade são as condições sob as quais determinado ato de fala pode ser considerado válido, sendo, portanto, condicionantes da ação comunicativa; na ação estratégica, contudo, a reciprocidade das pretensões de validade é rompida. Com isso, há uma orientação pela racionalidade instrumental, sendo o critério do êxito unilateral (Vizeu, 2005). Habermas (1990), no entanto, admite que esse agir estratégico pode ser latente, entendendo tal agir como parasitário, na medida em que o agente estaria rompendo de forma velada as condições de sinceridade.

A esfera pública seria um espaço social gerado pela ação comunicativa (portanto, pertencente ao mundo da vida), onde, via debate público, surgiriam as demandas dos atores sociais, a serem levadas ao Estado (Aguiar, Heller, & Melo, 2012). Seria, então, a opinião pública o resultado dessa articulação (Lubenow, 2007). No mundo da vida, a esfera pública organizar-se-ia pautada pela solidariedade, contrapondo-se ao Estado e o Mercado, o primeiro pautado por um código negativo, o da ação coercitiva, enquanto o segundo estaria pautado por um código positivo, o do ganho financeiro (Carvalho, 2012). Assim, cabe à esfera pública proteger o mundo da vida e garantir-lhe autonomia perante o sistema, bem como estimular a solidariedade advinda da cooperação (Lubenow, 2007). No entanto, o sistema é dotado de um poder de expansão, que, por meio dos processos de burocratização e monetarização, permite que os subsistemas poder e moeda, respectivamente, colonizem o mundo da vida (Carvalho, 2012).

A ação estratégica serve à maximização dos subsistemas poder e moeda; no entanto, tais subsistemas não só invadem o mundo da vida como também buscam sua maximização em relação ao outro, com destaque para a maximização do subsistema dinheiro e a consequente subordinação do poder político à lógica do capital (Gutierrez & Almeida, 2013). Esse processo estaria no cerne de inúmeras mazelas sociais da modernidade, da promessa moderna não cumprida. Nesse sentido, segundo Leão e Mello (2008), a sobrevivência passa a consistir na preservação do sistema, em detrimento da preservação da vida.

          

Procedimentos Metodológicos

Caracterizamos esta pesquisa como um estudo inserido no paradigma crítico, em que assumimos a realidade social como uma construção moldada historicamente por questões socioculturais e político-econômicas, de estatuto epistemológico subjetivista, realizado por meio de uma pesquisa qualitativa (Lincoln & Guba, 2005) e caráter indutivo, pois, apesar de utilizarmos de lentes teóricas, não instituímos categorias a priori (Leão, Mello, & Vieira, 2009).

Fizemos uso de entrevistas em profundidade, técnica que nos permite construir e observar — à medida que são valorizados tanto o uso de palavras e símbolos, quanto as relações humanas — a realidade que nos cerca (Flick, 2009), a qual assumimos como uma forma de interação entre entrevistado e entrevistador, propiciando um contexto dialógico para sua realização (Mattos, 2005).

O estudo teve como locus o município de Campina Grande, na Paraíba e, para a construção do corpus, levamos em consideração quatro grupos de agentes envolvidos na organização do São João campinense, visando, assim, acessar a pluralidade dos discursos dos envolvidos na organização do evento. Vale mencionar que muitas vezes percebemos, nas falas dos entrevistados, a voz do cidadão campinense, o que é identificável em nossos achados, ainda que esta posição social não tenha sido buscada, em virtude do escopo do trabalho. Destes, foram entrevistados 12 representantes, conforme apresentamos no Quadro 1. As entrevistas duraram, em média, 40 minutos e foram agendadas previamente; foram gravadas e, posteriormente, transcritas. Para analisá-las, utilizamos a análise do discurso, que assume a linguagem como prática social, devendo ser acessada para além de sua gramática superficial (Gill, 2002).

 

Quadro 1 – Entrevistas que foram aplicadas junto aos agentes envolvidos

GRUPO

ENTREVISTADOS

Governo municipal

1 gestor da área de turismo da Prefeitura Municipal

Empresários

1 proprietário de restaurante (em operação dentro e fora do Parque do Povo); 1 gerente de hotel; 1 proprietário de agência de turismo; 1 executivo da Associação Comercial de Campina Grande; 1 colunista social e proprietário de empresa de eventos; 1 proprietário de uma das empresas prestadoras de serviços ao São João

Representantes culturais

1 representante do Memorial do Maior São João do Mundo; 2 representantes do Parahyba Convention Bureau

Patrocinadores

2 representantes de empresas

Fonte: Elaboração dos autores.

 

Por fim, adotamos a triangulação como critério de qualidade da pesquisa qualitativa (Paiva, Leão, & Mello, 2011), por meio de um procedimento em que a análise dos dados e suas relações com a teoria foram validados pelo pesquisador mais sênior envolvido no estudo, de forma a revisar interpretações e identificar possíveis contradições durante o processo.

 

Descrição dos Resultados

Conforme antecipado, a análise dos dados apontou para a abordagem teórica habermasiana. Esta será evocada para a interpretação dos dados que ora apresentamos. Nossos achados revelam discursos sobre o processo de elaboração do evento “Maior São João do Mundo” como uma intervenção do Estado em um folguedo popular que caracteriza uma ação estratégica, ou seja, finalística, teleológica, movida pela consecução de objetivos da Administração Pública e de agentes da iniciativa privada.

Nossos achados apontam para um processo de colonização da festa junina, outrora movida pelo entendimento mútuo e sem caráter teleológico a priori — uma colonização pelo sistema de marketing. Identificamos, nos discursos analisados, dez traços que apontam para a festa junina “colonizada”: valoroso, segmentado, vantajoso, lucrativo, expertise, diversificado, obsoleto, estagnado, simplista e atrativo. Todavia, em cada um deles, identificamos, de forma imbricada, aspectos que remetem à festa tradicional, ou seja, ao mundo da vida.

Passamos a descrever cada um desses traços, em que dispomos a análise propriamente dita e tecemos reflexões à luz da teoria, de forma a elucidar o processo analítico como um todo.

O extrato abaixo diz respeito aos preços praticados pelos comerciantes durante os festejos juninos na cidade:

É o período que ele mais gasta. Além da tradição, dele ter uma... na realidade, junho é o segundo natal, né? Além dele ter... comprar roupa, além dele ter o consumo, do tipo, a festa ficou mais voltada pra os turistas do que pra o próprio campinense, então o pessoal não pensa nos valores. É tanto que a grande reclamação minha mesmo, pessoa, você se sentar numa barraca daquela e gastar duzentos reais, enquanto se fosse num dia normal, se fosse no mesmo restaurante, você consumia e você ia gastar oitenta. Ou seja, você gasta 100% a mais pra fazer a mesma coisa. Eles não tão distinguindo, assim, pronto: “ta, você é turista, eu não quero saber”. Um milho, que é um real o ano todinho, eu coloco por dez, porque eu sei que eu vou vender e pronto. O turista que vem, ele vai comprar... só que o turista que vem também, ele faz uma grande reclamação aqui também, eu to falando agora enquanto hotel, ele: “Rapaz, uma Coca-Cola 5 reais!”. Então, assim, são coisas que... sabe? Não dá pra entender. Como é que a mesma Coca-Cola... a Coca-Cola não aumentou o preço pra vender pra festa, mas uma Coca-Cola de 2,50, uma latinha, passou pra 5. Ou seja, aumenta 100% no período de São João. E depois, a mesma pessoa ta vendendo a mesma latinha por 2,50. Ou seja, ele também não pensa no cliente interno, entende? [grifos nossos]

 

Nesse trecho, o entrevistado questiona o caráter abusivo dos preços praticados contra os moradores da região. No entanto, assume como legítimo que as festas tradicionais (e até de cunho religioso) sejam pautadas em importância pelo volume de consumo que elas representam para os indivíduos, ao declarar que o São João é um segundo Natal, legitimando o aumento do consumo como uma característica de uma festa popular relevante. O discurso não questiona o fato de a festa ser pautada no consumo, como um “segundo Natal”, mas o fato de esses preços serem abusivos. Assim, ele considera um dever investir financeiramente na festa, como a obrigatoriedade de obter novas peças de vestuário. Também evoca a queixa do turista no sentido de que os preços são elevados. Isso revela uma prevalência do subsistema moeda sobre o festejo, não havendo um entendimento mútuo, na medida em que os interesses dos integrantes do evento (no caso, comerciantes) prevalecem. Por outro lado, revela um Estado conivente, em que as práticas mercadológicas, ainda que consideradas abusivas pelos cidadãos, não são reguladas nesse sentido, mas promovidas com a anuência dessa instância. Assim, na passagem “Um milho, que é um real o ano todinho, eu coloco por dez, porque eu sei que eu vou vender e pronto”, admite não haver regulação dos abusos que, segundo ele, os comerciantes cometem, materializando uma ação teleológica em que o entendimento mútuo dá lugar à primazia de interesses do capital sobre os cidadãos.

Esses discursos remetem ao aspecto valoroso da festa junina. Sob a perspectiva dos organizadores do evento, trata-se de uma oferta que se entrega ao cliente, a qual produz um valor específico no contexto da festa. Assim, diversos agentes dos setores público e privado empenham seus esforços, obtendo um retorno financeiro. Para tais agentes, o aumento de preços a níveis muito superiores à média anual é uma prática legítima, pois corresponde à dinâmica natural do mercado, de elevar o preço de suas ofertas em virtude de um aumento significativo de suas demandas. O próprio cidadão, que nessa dinâmica ocupa o status de consumidor, apesar de considerar esse aumento abusivo, tende a reconhecer que essa dinâmica do mercado é legítima, na medida em que reconhece a repercussão de um festejo em virtude da importância em dinheiro investida nesse festejo (“[...] é o segundo Natal”). Assim, embora possamos considerá-lo, sob a perspectiva do sistema, uma festa valorosa, na medida em que entrega valor a seus consumidores e organizadores, pode ser considerado em seu aspecto explorador se analisado à luz do mundo da vida, uma vez que busca obter lucros de um festejo ao mesmo tempo que exclui de uma manifestação da cultura popular aqueles que não podem arcar com os altos custos, sendo o imperativo do lucro exacerbado um propósito que vai de encontro à ideia de entendimento mútuo, já que esse lucro dá-se em detrimento do divertimento do morador local.

Do ponto de vista mercadológico, a “entrega de valor” presume um dado público. Assim, o aspecto segmentado revelou-se nos discursos analisados referindo-se à oferta de estruturas distintas para públicos de diferente poder aquisitivo. No Parque do Povo, as classes A e B contam com uma estrutura de grandes barracas e restaurantes, enquanto as classes menos abastadas devem se dirigir a um setor do evento com barracas mais modestas, separado do setor destinado aos consumidores mais abastados. Também há uma divisão entre aqueles que apreciam o forró pé de serra e os que preferem vertentes mais estilizadas, assim como a inserção de ritmos que não pertencem, por tradição, aos festejos do ciclo junino. Dessa forma, impõe-se à festa uma lógica de mercado, na qual os indivíduos são agrupados conforme as opções de lazer e de gastronomia que seu poder de compra permite, implicando uma distinção entre os indivíduos baseada no consumo. Por outro lado, à luz do mundo da vida, implica uma ruptura com a reciprocidade de relações que caracteriza um folguedo popular, impondo uma segregação entre os indivíduos baseada em aspectos mercadológicos.

É difícil você fazer um evento pra agradar todo mundo. Depois, é difícil você fazer um evento que... só pra classe C ou D. [...] Num adianta você dizer que quer levar o cara da classe A lá pra uma barraquinha pra comer espetinho. Ele não vai, né? Também não adianta fazer o inverso. Ou seja, pegar o cara que come espetinho lá a 1 real ele botar numa barraca daquela. [grifos nossos]

 

No depoimento, o entrevistado menciona o intuito de “agradar todo mundo”, quando a concepção de “agradar” remete à oferta de um mix apropriado para cada público. Assim, as singularidades das demandas aglutinam-se na pertença a uma classe, esta vinculada ao poder de compra. Assim, o desafio de agradar resume-se à prática de precificação coerente com o poder de compra do indivíduo, no caso das classes menos abastadas[A7] ; e no caso das mais abastadas, também [A8]  um propósito de distinção, uma vez que esse público demandaria um mix mais sofisticado, em vez de “comer espetinho”.

O discurso que sustenta a mercadorização do evento pressupõe que o mesmo seja vantajoso com relação às oportunidades de negócios que o evento proporciona à cidade. Sob a ótica do sistema, a conversão da festa junina em evento de grande porte proporciona uma visibilidade, inserindo o município em um cenário de eventos e proporcionando ganhos de ordem financeira. Esses ganhos, porém, como em toda ação no plano do sistema, são concentrados e privilegiam determinados grupos (sobretudo a Administração Pública e agentes do setor privado), em detrimento do bem-estar generalizado. Dessa forma, o que representa uma fonte de vantagem à cidade, representa, sob a ótica do mundo da vida, um abuso, uma vez que a realização da festa ocasiona uma série de transtornos aos moradores e frequentadores da cidade, tais como congestionamento no trânsito, aumento significativo dos preços no comércio, violência, etc.

A nossa frota de táxi é pequena pro São João. Ela tem um bom tamanho pra cidade no seu dia a dia, isso a gente precisa fazer essa diferença. [...] A rede hoteleira nossa é uma rede boa, digamos assim, que a gente usa no dia a dia, que atende basicamente as outras cidades, mas com o aumento já de indústrias, de uma série de outras movimentações ela já ta pedindo uma expansão. [grifos nossos]

        

No trecho de entrevista acima, aponta-se[A9]  as estruturas da cidade que precisam ser ampliadas de modo a abrigar a demanda junina, ainda que se mostrem suficientes durante a maior parte do ano para os moradores. Dessa forma, as demandas do município são reduzidas às demandas de lucratividade do setor turístico.

O aspecto lucrativo evidencia-se no intuito de desenvolvimento econômico e social de diversos atores envolvidos no evento, uma vez que este proporciona lucros tanto aos pequenos comerciantes quanto aos grandes empresários incluídos na cadeia de suprimentos. Esse aspecto revela claramente uma colonização, na medida em que a própria concepção de desenvolvimento diz respeito a uma perspectiva de ganhos financeiros, privilegiando a cadeia produtiva envolvida no evento. Por outro lado, sob a ótica do mundo da vida, o evento tende a ser concentrador, na medida em que a concepção de desenvolvimento assenta-se sobre o ganho financeiro, o que implica a geração de ganhos concentrados para uma minoria, em detrimento de uma maioria, que é penalizada com a obrigatoriedade de arcar com custos acima do habitual se desejar participar do evento.

[...] o campinense, ele precisa olhar... o turista não vem como ele, ele vem disposto a gastar um pouco mais. Então que ele gaste um pouco mais porque ali tá pagando o garçom, a família do garçom, o fornecedor, a pessoa que tá arrumando a barraca, o pedreiro, o marceneiro, mexe com a cidade inteira. Os benefícios são maiores que os malefícios. [grifos nossos]

        

No extrato analisado, o entrevistado defende que o campinense tem o dever de entender os custos elevados, pois aquilo se destina ao turista e fomenta a geração de renda para diversos profissionais. Isso pressupõe a redução do evento à finalidade de gerar lucro, ao mesmo tempo em que desconsidera as demandas daqueles que se sentem prejudicados por não terem acesso ao festejo de sua própria cidade. Nesse sentido, a concepção de “benefícios” (que superam os malefícios) é de ordem unicamente econômica, enquanto aspectos como o entretenimento e a fruição dos próprios campinenses deixam de ser prioridade, e a demanda dos campinenses por um festejo mais acessível torna-se ilegítima (“o campinense, ele precisa olhar”).

Para que o evento propicie os resultados esperados do ponto de vista mercadológico, não é cabível “amadorismo” em sua organização, que requer um trabalho com expertise. Tal tarefa diz respeito à Administração Pública municipal, que se insere nesse contexto como a responsável por organizar o megaevento, proporcionando a montagem da estrutura física, a programação, divulgação, criação de parcerias com agentes da iniciativa privada, etc. Isso representa a apropriação pelo Poder Público de uma manifestação espontânea do povo, como produto turístico e fonte de desenvolvimento econômico. Nesse sentido, apropria-se de uma festa que é elaborada de forma artesanal, o que não implica ser amador (uma vez que não requer profissionalização), eliminando dela os elementos tradicionais.

A base nossa é o cultural, é o que vai fazer a gente crescer no mercado e sedimentar. Campina precisa lucrar muito mais, Campina precisa vir mais, vestir mais, assim, o evento, e entender que o São João, ele não é só 30 dias, ele é uma identidade que é vendida o ano inteiro. [grifos nossos]

 

Nesse extrato, o entrevistado admite ser o lucro uma necessidade (“precisa lucrar”), sendo a cultura entendida não como uma manifestação espontânea, mas um ativo estratégico passível de ser gerido, de forma a possibilitar “crescer no mercado”.

Assumindo a festa como produto, é necessário que ele seja diversificado, o que ocorre por meio da oferta de opções cada vez mais amplas de lazer a gastronomia na festa junina, o que implica uma modificação das tradicionais estruturas físicas (como a palhoça) para uma estrutura mais ampla e confortável voltada para um público cada vez maior, assim como a inclusão de ritmos estilizados e até mesmo de ritmos não pertencentes ao ciclo junino. Sob a ótica da festa tradicional, elaborada para o benefício mútuo dos membros das comunidades, isso resulta numa festa permissiva que não é o São João em si, mas um megaevento com pouco respeito ao modelo de festa nascido espontaneamente no município, e na primazia de interesses comerciais, o que proporciona a mescla de elementos inovadores no intuito de agradar a maior diversidade de público possível.

 

Aí comida... aí você vê lá os caras vendendo... primeiro, que há muito tempo os caras vendem: churros... não, não é churros, é crepe, que aí vem crepe... esse ano teve comida japonesa, mexicana, né? Aí chega ao ponto nesses dias você não vai ver praticamente o São João. Aí o pessoal também diz assim: “não, mas tem muita gente de fora, é bom que o pessoal vê isso”. [grifo nosso]

 

A tradição do festejo pode representar uma ameaça. O aspecto obsoleto remete às tentativas de mesclar os elementos da festa tradicional a traços inovadores, de modo a proporcionar apreciação ao grande público. A inclusão de elementos mais inovadores pressupõe a criação de um mercado mais amplo para o consumo da festa junina, na medida em que diversos traços da festa tradicional mostram-se ultrapassados sob a perspectiva das práticas de entretenimento atuais. Por outro lado, sob a ótica do mundo da vida, a festa representa um momento de celebrar as raízes e uma tentativa de manter a festa criada pelos antepassados e transmiti-la às gerações futuras. A perspectiva mercadológica que privilegia a ampliação dos mercados, descaracterizando, para tanto, alguns traços da festa tradicional de modo a agradar o grande público, ameaça o caráter memorial do São João construído pelas famílias do passado. No extrato abaixo, o imperativo do lucro mostra-se como um obstáculo para a oferta de pratos típicos e abre espaço para uma oferta diversificada, porém pouco alinhada ao tradicional festejo junino.

Esse ano a gente teve uma briga. [...] achar quem fizesse comida de milho pra botar no Parque do Povo. [...] tem lá no edital: espaço da vila da alimentação para a comida típica. Nós não conseguimos um. “Não tem lucro vender comida típica no Parque do Povo.” Como não tem, gente? Se o turista vem pra cá, [...] se eu posso vir jantar no Parque do Povo, comer uma comida boa: a pamonha, a canjica, seja lá o que for? E a gente não teve. Nós tivemos espaços que foram entregues à comida mexicana, né?, à comida árabe, à comida chinesa, e simplesmente nós não tínhamos comida regional. [grifos nossos]

 

De forma semelhante, o aspecto estagnado remete ao congraçamento entre as famílias e ao caráter religioso da festa. Do ponto de vista do mercado, esses elementos proporcionam uma barreira à inserção de elementos inovadores que convertam a festa num megaevento, uma vez que muitas famílias buscam preservar essa tradição, em busca de um festejo autêntico. Na lógica de mercado, todavia, o caráter religioso do evento não passa de um álibi que justifica a festa, mas não a caracteriza.

Onde é que está a raiz do São João? É no religioso. Ele nasceu da quermesse antes disso, né? Então é uma manifestação cultural que para o Nordeste deixou de ser quermesse e a gente precisa fazer essa evolução. E o turista quando aqui chega, ele procura entender essa evolução [...] Em cima disso, eu acho que o São João de Campina Grande tem uma identidade fantástica pra ser trabalhada. [grifos nossos]

 

No depoimento, embora admita-se a necessidade de se conhecer as raízes da festa junina, o entrevistado entende ser inevitável a desvinculação entre a formato atual e o tradicional, assumindo este processo como uma evolução, ou seja, uma adaptação necessária para a sobrevivência do festejo, ainda que essa perpetuação pressuponha uma ruptura com alguns dos seus elementos mais emblemáticos.

Nessa mesma linha, o aspecto simplista revelou-se nos discursos acessados com relação ao caráter despretensioso da festa elaborada pelas famílias no passado. Sob a ótica do mundo da vida, trata-se de um caráter singelo da festa junina, desprovida de qualquer traço de espetáculo, na medida em que representa a manifestação espontânea num ambiente familiar. Sob a perspectiva do sistema de mercado, no entanto, a festa junina tem, em suas raízes, uma simplicidade que, se mantida como é, não tem poder de atração para o evento, mas se trabalhada como caráter particular, converte-se num atrativo aos visitantes. Trata-se, pois, de uma espetacularização da simplicidade, na medida em que esse traço se converte em atrativo comercial. No depoimento abaixo, fica evidente como a “simplicidade” a que remete o festejo junino é convertida em um atrativo para o turista.

[...] eles vêm também pela tradição. Eles não só vêm pela festa. Eles aproveitam a festa pra se confraternizar, pra o milho... [...] Então, assim, o grande atrativo não é só a festa, e sim toda a estrutura que é montada, as chuvas, o período chuvoso, o período frio, que as pessoas vêm atrás, em busca disso. [grifos nossos]

        

É essa espetacularização o cerne da atratividade da festa, fortemente identificada no título de “O Maior São João do Mundo”, designação dada em 1983 por Ronaldo Cunha Lima,  prefeito responsável pela conversão da festa num evento de grandes proporções. Isso representa, sob a perspectiva do sistema, a consagração de um atrativo que insere o município no mapa dos grandes eventos do Brasil, representando um potencial de lucro e desenvolvimento. Para a população, tal aspecto, antes de ser problematizado, representa um orgulho à sua natividade; um apreço em pertencer à cidade que realiza esse evento. O trecho de entrevista abaixo ilustra a concepção de que a dimensão tomada pelo festejo provê ao campinense o sentimento de orgulho de ver sua terra natal sendo projetada.

Eu acho que de um modo geral ele [o campinense] gosta da festa, até por essa característica de estar todo mundo... quando fala em Campina Grande, fala que é a terra do maior São João do mundo, isso aí não tem a menor dúvida, né? [grifo nosso]

 

Como pudemos observar, a inserção de uma orientação mercadológica no festejo junino de Campina Grande pressupõe o benefício de ordem econômico-financeira a uma minoria, em detrimento de uma maioria que se sente ameaçada em suas tradições e até mesmo impossibilitada de usufruir do festejo em decorrência de preços proibitivos. Nesse sentido, a Administração Pública desponta como um importante agente na imposição de uma lógica de mercado ao festejo, sob o discurso desenvolvimentista.

 

Considerações finais

Conforme pudemos observar, o São João de Campina Grande foi paulatinamente subsumido a uma orientação mercadológica, que terminou por conferir uma nova feição a um festejo fortemente vinculado à tradição. Para além dos fenômenos de mercadorização da cultura e orientação do Poder Público por interesses privados, a abordagem habermasiana ofereceu uma possibilidade fértil de analisar esses aspectos em sua articulação.

Nossos achados apontam para uma clara primazia da ação estratégica, na qual o consenso do espaço público tende a se diluir nos imperativos políticos e mercadológicos implicados na “profissionalização” de um festejo que nasce na esfera pública. Essa esfera pública, onde nasceu o São João campinense, vê-se cada vez mais destituída de seu sentido de congraçamento e homenagem a uma entidade religiosa, sentidos estes que foram substituídos pelo de fruição de uma festividade. Assim, a festa, oriunda da esfera pública e assentada sob as bases da solidariedade e cooperação (valores que caracterizam a ação comunicativa e, portanto, o espaço público), converte-se num patrimônio, portanto passível de ser gerido pelo Estado (burocratização) e pelo mercado (monetarização), configurando um processo de colonização.

No entanto, diante desse processo, as próprias demandas oriundas da esfera pública mostram-se infiltradas pela lógica sistêmica. Isso aponta para o conceito de bidimensionalidade mundana, de Leão e Mello (2008). Vida e sistema mostram-se profundamente imbricados, de modo que não há mais como separar tais instâncias, ainda que para fins didáticos e analíticos. A organização do homem na esfera pública deu-se por meio de um processo de organização, assentado em regras. Dessa forma, assinala-se uma relação de mútua dependência, em que o sistema, ao colonizar, não aniquila o mundo da vida, mas alimenta-se do seu potencial cooperativo e solidário, enquanto o mundo da vida alimenta-se da capacidade organizativa do mundo do sistema.

Isso revela-se, sobretudo, no teor das demandas de diversos entrevistados, que questionam a ação do Estado e a lógica vigente no São João de Campina Grande sob um corpo de concepções sistêmicas, entendendo o processo de mercadorização da cultura como algo reificado, inevitável e natural. Assim, as demandas centram-se não em reivindicar o festejo junino que foi apropriado pelo Estado com a consequente imposição de sua lógica, mas em fazer-se beneficiário desse “serviço” (Estado) ou dessa “oferta” (mercado), legitimando a posição do Estado e do Mercado enquanto detentor do festejo.

Os achados também apontam para a ambivalência do sistema, na medida em que seus subsistemas buscam sua maximização em relação ao outro. Isso mostra um Estado fortemente pressionado por patrocinadores e mesmo pelos cidadãos, sob a forma de demandantes de ofertas, constituindo forças que modelam a ação do Poder Público na organização do São João campinense.

O presente estudo possibilitou a compreensão de como a mercadorização da cultura pode ser vista sob o prisma das tensões entre o Estado, o mercado e os cidadãos, mostrando que, apesar de não se tratar de um processo isento de contradições, mostra-se reificado e legitimado na esfera pública. Assim, os cidadãos demandam do Estado uma festa mais inclusiva e alinhada às suas conveniências, sem questionar o status de responsável pelo festejo assumido pelo Estado em parceria com a iniciativa privada. Esta investigação enseja, também, estudos a respeito das implicações do status de patrimônio atribuído aos festejos populares para a Administração Pública, o que pode se constituir como uma agenda de pesquisa mais ampla, tendo em vista o crescente relevo da mercadorização de manifestações culturais em todo o país.

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 [A1]Checar se ‘mediadora’ se refere a ‘primazia dos interesses burgueses’ ou somente a ‘interesses burgueses’. Caso se refira ao segundo, mudar para ‘mediadores’.

 [A2]A mediadora seria a burguesia, por isso editei o texto.

 [A3]Rever termo.

 [A4]Optamos por manter no presente para aludir à atualidade da obra. No entanto, caso os editores optem por utilizar a menção à obra no passado, será necessário alterar os tempos verbais em outros pontos do parágrafo (“analisa”, na primeira linha”; “discute”, na terceira linha; e “evoca”, na quinta linha).

 [A5]Rever trecho para ter certeza de que passa a ideia correta.

 [A6]Editado.

 [A7]Sugiro manter a vírgula, porque há um complemento de “resume-se” na linha posterior.

 [A8]Aqui não é o verbo “haver”, mas a preposição mesmo. “O desafio de agradar resume-se à prática... e a um propósito de distinção”.

 [A9]Manter o verbo no plural, uma vez que se trata de uma oração na voz passiva e a concordância dá-se com “estruturas” (equivale a “são apontadas as estruturas da cidade...).