ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE
Identificação e alteridade na identidade organizacional de uma organização pública
Identification and alterity in organizational identity of a public organization
José Osmar Gomes
Mestrado em Administração. Analista Organizacional Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Espirito Santo, IDAF, Brasil.
http://lattes.cnpq.br/7053181094391494
Letícia Dias Fantinel
Doutorado em Administração pela Universidade Federal da Bahia, Professora Adjunta do Departamento de Administração e do Programa de Pós-graduação em Administração Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Brasil.
http://lattes.cnpq.br/8188708807795008
Márcia Prezotti Palassi
Pós-doutorado em Psicologia Social na Universidad Complutense de Madrid/Espanha, Professora da Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil.
http://lattes.cnpq.br/9784040546135659
Alfredo Rodrigues Leite da Silva
Doutorado em Administração pela UFMG, Professor e coordenador do Professor do departamento de Administração e do Mestrado e Doutorado em Administração do Ppgadm/Ufes, Brasil.
http://lattes.cnpq.br/7360327621106156
Resumo: Este artigo tem por objetivo compreender a relação entre transformações contextuais vividas por uma autarquia estadual capixaba e as configurações identitárias manifestadas por gestores da organização. Buscou-se descrever os processos identitários da organização por um olhar interpretativista, pelo entendimento das relações simbólicas que permeiam essa organização, observados nas falas dos sujeitos. Utilizou-se pesquisa documental e entrevistas semiestruturadas individuais, material tratado a partir da técnica de análise de conteúdo. Como resultados, os achados da pesquisa apontam para duas configurações identitárias centrais que remetem à identificação do Idaf com outras organizações, e da distintividade do Idaf perante outros órgãos.
Palavras-chave: identidade organizacional; mudança organizacional; organizações públicas.
Abstract: This article aims to understand the relationship between contextual transformations experienced by a governmental institution of Espírito Santo, Brazil, and identity configurations expressed by the organization's managers. We describe the identity processes of the organization by an interpretive look at understanding the symbolic relations that permeate this organization, observed in speeches of the subjects. We used documentary research and individual semi-structured interviews, material treated with content analysis. As results, the research findings point to two central identity configurations that lead to the identification of Idaf with other organizations and the distinctiveness of Idaf before other organs.
Keywords: organizational identity; organizational change; public organizations.
Texto completo em português: http://www.apgs.ufv.br
Full text in Portuguese: http://www.apgs.ufv.br
As organizações públicas no Brasil têm vivido, principalmente a partir dos anos 80 do século passado, várias reformas administrativas com o intuito principal de consolidar na Administração Pública discursos e práticas em geral associados ao setor privado, a chamada administração gerencial (Bresser-Pereira, 1996). Em períodos anteriores, contudo, como entre os anos 1930 e 1980, também foram registradas reformas no setor público, com o objetivo central de adequar as organizações públicas a administrações tipicamente weberianas burocráticas, como investida de superação do modelo patrimonialista até então vigente (Lima Júnior, 1998). Tanto no primeiro período quanto no segundo, ditos acima, as tentativas foram parcialmente bem sucedidas. Pode-se dizer que se tem no Brasil, hoje, uma Administração Pública que apresenta elementos de diferentes modelos de gestão (Helal & Diegues, 2009), em um caleidoscópio que mescla transformações contextuais anteriores e contemporâneas.
O modelo híbrido de gestão, que pode ser encontrado em diversas organizações públicas brasileiras, por si só já seria suficiente para destacar as particularidades de se estudar esse tipo de organização. Mas, somado a ele, observam-se processos de mudança capitaneados por forças políticas locais, especialmente quando se fala em organizações de cunho estadual ou municipal. O caso específico que baseou este artigo é particularmente interessante por tratar-se do Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Espírito Santo (Idaf), órgão estadual de fiscalização agropecuária e ambiental caracterizado como organização pública, porém com especificidades que merecem um olhar mais aprofundado, o que será problematizado oportunamente neste artigo.
O recorte teórico que serviu de lente para a análise aqui empreendida vincula-se ao conceito de identidade, sob um olhar interpretativo, a partir do objeto focal da organização (nível de análise organizacional) e da dimensão de observação do interiormente observado. Ou seja, a análise se volta para a percepção de membros da organização sobre ela mesma, sem considerar especificamente a imagem externa da organização ao público em geral (Caldas & Wood Júnior, 1997). Considera-se, portanto, que o estudo dos processos de formação e transformação da identidade de uma organização é altamente relevante para a compreensão de dinâmicas organizacionais e que ainda permanece no campo com possibilidades de novos enfoques (Borges & Medeiros, 2011; Dutton & Dukerich, 2008; Mara, Fonseca, & Marques, 2014; Martins, 2013). A importância de enfocarem-se configurações identitárias na referida autarquia se torna evidente no reconhecimento da maneira pela qual diferentes aspectos identitários foram construídos até o momento nessa organização, e entende-se que tal enfoque pode contribuir na compreensão configurações identitárias organizacionais, especialmente no âmbito de entes públicos.
A partir de análises preliminares, foi observado que o Idaf oferecia muito mais elementos constitutivos de sua identidade do que apenas "uma organização pública". Esses elementos seriam relacionados não apenas a características inerentes ao próprio órgão, mas também ao contexto em que a organização se insere: a apresentação de múltiplas facetas nas várias atribuições do órgão sem relação umas com as outras; a forma como essas atividades eram incorporadas ou desincorporadas ao Idaf; a identificação de grupos internos com objetivos divergentes que colocavam os grupos em polos de conflitos; alterações constantes pelas quais a estrutura da autarquia passou ao longo do tempo. Este contexto mais específico em que esta organização pública se encontra foi chamado, para os fins deste trabalho, de “contexto da defesa sanitária e inspeção agropecuária”, do qual fazem parte órgãos de diferentes naturezas, inclusive o poder público estadual, cuja alçada corresponde à organização estudada. Assim, por exemplo, quando determinadas funções são retiradas de outros órgãos presentes no contexto agropecuário e atribuídas ao Idaf, muitas delas são desenvolvidas por demandas externas à organização (referentes, pois, ao referido contexto). Entende-se, nesta pesquisa, que tais mudanças possuem importantes implicações identitárias para a organização, uma vez que novas responsabilidades são a ela passadas, o que altera, no mínimo, a razão de ser e os processos de trabalho no órgão.
Muitas transformações ocorridas no contexto e na estrutura do Idaf foram implantadas pelo governo do estado do Espírito Santo a partir do ano de 1992, com o propósito formal de atribuir à autarquia atividades que antes eram de responsabilidade de outros órgãos da administração estadual, alguns deles já pertencentes ao contexto em que a organização estudada se insere. Desde a criação da autarquia, as atividades incorporadas poderiam ou não ser assumidas pelo Idaf em conjunto com os indivíduos que as desempenhavam anteriormente, membros de outras organizações.
Nesse sentido, a autarquia estudada tem passado, nos últimos anos, por mudanças de cunhos diversos, que, devido a novas expectativas geradas em termos das atividades desempenhadas, de novos grupos incorporados, além de modificações estruturais, o que ensejou nos pesquisadores a busca pelos reflexos de tais mutações no âmbito identitário da organização. Desta forma, a pergunta norteadora da presente pesquisa foi: como as transformações no contexto da defesa sanitária e inspeção agropecuária entre 1996 e 2014 se relacionam com as configurações identitárias manifestadas por gestores? A escolha por esses sujeitos de pesquisa deu-se por considerar que tais gestores ocupam cargos-chave na organização, o que lhes propicia uma visão mais ampla da estrutura e das modificações contextuais ocorridas ao longo do tempo. Assim, foram realizadas entrevistas em profundidade com os cinco gestores mapeados. Ao corpus de dados composto pelas entrevistas, foram somados documentos como leis de criação e alteração das atividades do órgão, e todo o material obtido foi tratado a partir da técnica de análise de conteúdo (Krippendorff, 1990).
Este artigo está estruturado da seguinte maneira: após esta introdução, apresenta-se o quadro teórico de referência que foi adotado nesta pesquisa; no item seguinte, enfoca-se a metodologia utilizada para a consecução dos objetivos inicialmente traçados; ao fim, discutem-se e analisam-se os dados obtidos para, então, serem apresentadas as conclusões desenvolvidas a partir de tal análise.
Segundo Pimentel e Carrieri (2011), diferentes conceitos de identidade organizacional começaram a ganhar espaço nos estudos organizacionais a partir do artigo seminal de Albert e Whetten (1985), que transportou as principais formulações da identidade individual para a identidade organizacional. Esses autores conceituaram identidade organizacional pela autorreflexão acerca de “quem somos enquanto organização” (Albert & Whetten, 1985, p. 264) e apontam três características coletivas que seriam a base para a identidade organizacional: a centralidade, a distintividade e a temporalidade.
Essas definições iniciais, segundo Beyda e Macedo-Soares (2010), receberam muitas críticas de diferentes naturezas (Martins, 2013; Gioia, Schultz, & Corley, 2000; Pahins, 2012). Ressalta-se, nesse sentido, que tais críticas são fundamentais para concepções mais contemporâneas acerca das identidades. Segundo Caldas e Wood Júnior (1997) e também Pimentel e Carrieri (2011), diversos estudos foram desenvolvidos em vários níveis de análise, indo muito além da definição original clássica, embora a tivessem como ponto de partida. Há diferentes possibilidades de enfoque teórico do fenômeno e, dentre eles, destaca-se a abordagem interpretativista, a que norteou este estudo.
Na perspectiva interpretativista, a identidade é entendida como um processo de construção compartilhada pelos membros da organização dos significados aceitos. Não se admite, nessa abordagem, a identidade como algo que possa ser medido ou manipulável; trata-se de um conjunto de significados que adquiriu certo grau de estabilidade em um grupo (Gioia, Schultz, & Corley, 2000; Souza, Carrieri, & Faria, 2008; Carrieri, Souza, & Almeida, 2008; Borges & Medeiros, 2011).
A opção de trabalhar com o conceito no nível organizacional e com a dimensão conceitual interna (Caldas & Wood Júnior, 1997) teve por objetivo desvendar a percepção compartilhada de gestores sobre uma autopercepção ou autoimagem da organização. Cabe destacar que tal perspectiva não necessariamente se confunde com a ideia de imagem organizacional, embora não a exclua totalmente. Nas palavras de Nogueira (2007, p. 83), por exemplo, o "conceito de identidade organizacional necessariamente não exclui o de imagem, mas parece focalizar o que permite aos participantes e membros de determinada organização percebê-la como única e diferente das demais".
Dessa forma, para os fins da presente pesquisa, buscou-se um repertório de significados comum entre os membros sobre a identidade da organização, ressaltando-se que o interesse aqui é a análise de fenômenos sob a ótica da construção social da realidade (Berger & Luckmann, 1985). A legitimação e naturalização, nesse processo de construção social, são vistas como construídas por intermédio do conhecimento que determina o que é real para o indivíduo. Vista sob uma realidade não dogmática ou tampouco absoluta, a construção da identidade se faz no interior de contextos sociais; contudo, ainda que se trate de uma construção social, não significa que a noção de identidade seja uma ilusão, na medida em que é dotada de eficácia social e produz efeitos sociais reais (Cuche, 2002).
A relação dialética entre identificação e diferenciação, ou seja, pertencimento e não pertencimento, é chave para a compreensão de aspectos identitários, e trata-se de aspecto fundamental na construção teórica e analítica deste artigo. Concorda-se, portanto, com Cuche (2002), para quem a identidade se constrói em uma relação que opõe um grupo aos outros grupos com os quais se está em contato. Configurada, nesse sentido, como um modo de categorização, ela cumpre um importante papel aos sujeitos, à medida em que é utilizada para afirmar e manter uma distinção identitária. Tal concepção relacional e, por isso mesmo, dinâmica da identidade permite ir além das visões tradicionais que a percebe como atributo original, permanente e imutável. A essência, por assim dizer, sai do foco central da análise, e em seu lugar entra a relação (Cuche, 2002). Nessa relação dialética entre identificação e alteridade, a identidade é resultante de processo situacional e relativo, fenômeno pelo qual a dimensão contextual se torna tão importante neste estudo.
Assim, à medida em que se considera a construção identitária como fenômeno dado no interior de contextos sociais (Cuche, 2002), faz-se necessário conhecer tais contextos. Desta forma, o próximo item apresenta os aspectos relevantes para este estudo no que se refere a organizações públicas e suas transformações.
Uma das características mais marcantes das organizações públicas é o fato de se basearem em modelos burocráticos. Isso se deve à disseminação desse modelo nas administrações públicas em todo o mundo durante o século XX (Secchi, 2009).
Weber (1999) identificou que a autoridade predominante no modelo burocrático era a racional-legal e, portanto, o poder se originaria nas normas e nas instituições formais. Essa era a hipótese inicial da teoria de Weber, da qual se derivam as principais características do modelo burocrático: a formalidade, a impessoalidade e o profissionalismo.
Em organizações públicas, entende-se que a discricionariedade individual deve ser evitada ao máximo pelo estabelecimento de deveres e responsabilidades aos membros da organização, pelo estabelecimento de uma hierarquia rígida e pelos procedimentos administrativos. Assim, os processos decisórios e as comunicações internas e externas, bem como as tarefas dos empregados e a forma de padronização dos serviços são documentados e publicados. Já a impessoalidade prescreve que as relações entre os membros e com o meio externo sejam baseadas em funções e níveis de autoridade claros. Por fim, o profissionalismo pressupõe que as funções sejam atribuídas às pessoas com base na experiência e no desempenho do funcionário na função. A natureza humana é tratada com desconfiança; dessa forma, as atividades devem sempre passar por verificações (Secchi, 2009).
Não obstante, o modelo burocrático possui muitas objeções. O trabalho de Merton (1970), por exemplo, buscou mostrar os efeitos negativos das organizações do modelo burocrático, aos quais chamou de disfunções burocráticas. Esse autor analisou o impacto negativo da prescrição estrita de tarefas sobre a motivação dos empregados, a resistência às mudanças e pouca importância dada aos objetivos ocasionados pela obediência incondicional às regras e normas. Além disso, o autor aponta que o critério da promoção funcional por senioridade contribui para frear a competição e para senso de corporativismo entre os funcionários.
No Brasil, o modelo burocrático começou a ser implantado na Administração Pública na década de 1930. Com isso, o contexto cultural das organizações públicas começa a ser permeado por conceitos como profissionalização, hierarquia funcional, impessoalidade, formalismo, entre outros; essas características, apesar de conferirem novos contornos na cultura das organizações, não eliminaram as práticas existentes previamente (Bresser-Pereira, 2001).
Características como as existentes no modelo patrimonialista, “uma prática social que não estabelece diferença entre a esfera pública e a particular” (Neto, 2008, p. 206), seguem presentes no serviço público brasileiro, bem como o personalismo, o autoritarismo e o “jeitinho” (Motta, 1996), embora não sejam aspectos exclusivos de organizações públicas. O personalismo seria a centralização do poder em figuras pessoais (Motta, 2007), ou, ainda, a criação e manutenção pessoal de relacionamentos no ambiente de trabalho (Freitas, 2009). Já o autoritarismo seria representado pela submissão ao poder (Chu & Wood Júnior, 2008), gerando aversão ao conflito e tendência de as decisões caminharem para o consenso por medo do confronto. Por fim, o “jeitinho” representa a quebra intencional de regras com a finalidade de benefício próprio ou de outro (Barbosa, 2006).
As características das organizações públicas no Brasil são, em geral, relacionadas às diferentes tentativas de implantação de mudanças que, embora não tenham conseguido eliminar as características dos modelos anteriores, imprimiram novas características àquelas existentes (Pahins, 2012), o que se supõe ser importante para os estudos da identidade de organizações públicas. Os contextos da administração patrimonialista, burocrática e gerencial ainda possuem contribuições na forma de gerenciar do gestor público.
Junquilho (2004, p. 139), ao problematizar a "pretensão de transformar o perfil dos administradores públicos de 'burocráticos' para 'gerentes'", propõe um novo tipo ideal chamado por ele de "Gerente Caboclo". Esse tipo ideal não seria nem o burocrata vinculado a "regras de impessoalidade; às hierarquias e aos procedimentos padronizados" (Junquilho, 2004, p. 142) nem o gerente voltado "às ideias da primazia do cliente e do mercado; da diversidade e flexibilidade; das habilidades multidimensionais dos profissionais" (Junquilho, 2004, p. 142), mas um tipo híbrido que navegaria entre os polos da burocracia e do gerencialismo.
Assim, apresenta-se a seguir um esquema conceitual que tem por objetivo ilustrar como os elementos teóricos principais se relacionam nesta pesquisa. Estes elementos são as (trans)formações da organização e a identidade organizacional imersa no contexto das organizações públicas.
Dessa forma, compreender o contexto de uma organização pública envolve o estudo de suas características, bem como suas influências na gestão. Dessas práticas híbridas de gestão, que se confundem em uma dinâmica contextual complexa, emergem formas discursivas que evidenciam configurações identitárias diversas. Tais elementos são fundamentais para a perspectiva analítica adotada neste artigo, de forma que se desvendam muitas dessas características nas falas obtidas em campo, que serão apresentadas e analisadas oportunamente neste texto. O próximo item discute, portanto, os procedimentos metodológicos utilizados para o delineamento desta pesquisa.
Uma vez que o objetivo do presente estudo foi compreender a relação entre transformações contextuais vividas por uma organização pública e as configurações identitárias manifestadas por seus gestores, fez-se necessário apreender e analisar as falas dos gestores e outros dados de suporte que permitissem desvendar as mudanças contextuais em questão. A pesquisa descritiva (Vergara, 2007) de natureza qualitativa (Triviños, 1987), empreendida para os fins deste estudo, tomou dois rumos centrais: (1) a realização de entrevistas semiestruturadas (Gaskell, 2013) com os referidos gestores e (2) o levantamento documental (Gil, 2008) como complemento a esses dados, de forma que os discursos manifestos fossem situados em termos do contexto da organização.
O Idaf possui gestores na sua unidade central, localizada na capital do estado, e nas unidades espalhadas geograficamente no interior do estado. Na unidade central, localizam-se dois diretores e seis chefes de departamento da organização, no interior localizam-se quatro chefes de regionais e 29 chefes de escritórios locais. Nesta pesquisa, optou-se por entrevistar apenas os gestores em cargos mais elevados na hierarquia, por entender que estes ocupam cargos-chave na organização, de forma que possuiriam assim uma visão mais ampla da estrutura e do contexto, bem como das modificações ocorridas nesses âmbitos.
As entrevistas, assim, ficaram concentradas nos níveis mais elevados de gestão da organização: as diretorias, chefes de departamentos e chefes de escritórios regionais. Nesse sentido, totalizaram-se cinco entrevistas. O critério de escolha dos pesquisados passou pela senioridade e pelo fato de terem vivido diferentes mudanças no contexto da autarquia ao longo do tempo. Tendo em vista os temas delicados que foram abordados nas entrevistas e a facilidade de identificação devido aos cargos ocupados pelos pesquisados, optamos por identifica-los aleatoriamente como Entrevistado 1, Entrevistado 2, Entrevistado 3 e assim sucessivamente, de forma que seja possível respeitar o anonimato dos participantes.
As entrevistas aconteceram no local de trabalho do entrevistado, em salas de reuniões disponibilizadas para esse fim e tiveram duração média de duas horas, tendo sido integralmente gravadas e transcritas.
Quanto ao levantamento documental, a principal fonte encontra-se no Diário Oficial dos Poderes do Estado do Espírito Santo (DIO-ES), instrumento central de publicação de modificações estruturais de atribuições e responsabilidades do Idaf. Dessa forma, tais documentos foram pesquisados tanto nos arquivos históricos da organização, que normalmente arquiva cópias dos diários referentes a ele, quanto nos arquivos do próprio DIO-ES. Esses documentos estão devidamente identificados no Quadro .
Quadro 1 - Documentos legais que atribuem, eliminam ou modificam funções do Idaf
Publicação |
Lei |
Descrição |
01/03/96 |
Lei Complementar 81 |
Institui o Sistema Estadual de Política Agrícola, Agrária e Pesqueira do Espírito Santo - SEPAAP - e dá outras providências. |
12/01/01 |
Lei Complementar 197 |
Moderniza e reorganiza a estrutura organizacional básica do Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Espírito Santo – IDAF e dá outras providências. |
26/06/01 |
Lei Complementar 205 |
Moderniza e reorganiza a estrutura organizacional básica do Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Espírito Santo – IDAF e dá outras providências. |
31/10/01 |
Decreto 910-R |
Regulamento do Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do ES. |
10/01/07 |
Decreto 1936-R |
Regulamenta o licenciamento ambiental de barragens para fins agropecuários no Estado do Espírito Santo. |
02/07/07 |
Lei 8.589 |
Dispõe sobre a Gestão das Unidades de Conservação no âmbito do Poder Executivo Estadual. |
28/12/12 |
Acordo de Cooperação 007 |
Unidades descentralizadas do Idaf passam a receber documentos destinados ao Iema. |
19/06/06 |
Acordo de Cooperação 704s |
Transferência da UTE do ISJN para o Idaf. |
Fonte: Dados da pesquisa.
Do quadro 1 é possível observar as transformações contextuais pelas quais o Idaf passou, delineadas por meio de dois normativos, o Decreto 1936-R e a Lei 8.589. O Decreto 1936-R designa ao Idaf atividades que não eram anteriormente desempenhadas pelos indivíduos da organização e que, por vezes, sequer eram capacitados para o desempenho dessas novas atividades. Já a Lei 8.589 transfere a administração das unidades de conservação ambientais (os parques ambientais estaduais) do Idaf para o Iema (Instituto Estadual do Meio Ambiente).
É interessante destacar que, da análise inicial desses documentos, evidenciaram-se primeiramente os marcos históricos das mudanças identitárias referidas pelos perticipantes, mas, além disso, os diferentes papéis e espaços reservados ao Idaf no contexto político e social de cada época, principalmente por meio de suas atribuições e responsabilidades.
Assim, tendo em mãos as entrevistas e os documentos coletados, foram iniciadas as análises pertinentes a cada um desses tipos de dados coletados. As leis serviram para contextualizar os acontecimentos do interesse da pesquisa, e as entrevistas foram a base para a realização da análise de conteúdo (AC) (Krippendorff, 1990).
Os dados coletados foram tratados a partir da análise de conteúdo (Krippendorff, 1990), que teve como características a análise do contexto, dos momentos históricos das mudanças e suas peculiaridades. Essas mudanças compõem-se, principalmente, dos momentos de criação ou de alteração das atividades da organização.
Assim, para a análise de conteúdo realizada, utilizou-se uma categorização de grade mista com categorias a priori que, durante a fase de exploração do material, sofreram alterações. Foram utilizadas inicialmente cinco unidades temáticas (categorias) por se identificarem com uma definição estrutural particular do conteúdo dos relacionamentos, explicações e interpretações. Dessa forma, as categorias a priori que balizaram os roteiros de entrevista foram: Apego às regras e rotinas; Supervalorização da hierarquia; Apego ao poder; Paternalismo nas relações; Identificação com o grupo.
Ao final, obtiveram-se unidades temáticas (categorias) identificadas com uma definição estrutural particular do conteúdo dos relacionamentos, explicações e interpretações. Todavia, unidades referenciais também foram analisadas como forma de interpretação da referência do entrevistado em suas falas.
No momento da análise, contudo, verificou-se a necessidade de adaptação das categorias elaboradas previamente. Algumas não se mostraram relevantes a partir da análise das falas dos sujeitos, e outras precisaram ser alteradas, bem como novas categorias foram observadas. Essas categorias finais foram agrupadas em dois núcleos simbólicos centrais:
- O Idaf Igual: O Apego às Rotinas; O Apego Ao Poder;
- O Idaf Diferente: Fiscalização, Identificação e Conflitos; Onipresença: O Idaf em Todo o Estado; Ecletismo: Várias Atribuições, um Único Órgão; Inovar é Realmente Preciso? O Idaf e a Informatização; e, por fim, Um Órgão Estratégico sem Planejamento Estratégico.
Dessa forma, as categorias finais de análise construídas seguiram a relação dialética entre identidade e alteridade (CUCHE, 2002). Nas principais unidades temáticas analisadas, observaram-se aspectos identitários que podem ser relacionados a uma identificação do Idaf com outras organizações, em especial as públicas; por outro lado, foram evidenciados aspectos de distinção do Idaf em relação a outras organizações. Cada repertório simbólico e suas respectivas categorias são tratados detalhadamente a partir do item seguinte.
Cabe ressaltar, contudo, que a escolha em tomar a visão de determinados sujeitos trouxe uma análise que não pode ser generalizada à organização como um todo e deve ser tratada, portanto, como uma visão gerencial. Uma vez que outras categorias de servidores da organização não foram ouvidas, elas podem não ter sido representadas nos resultados deste trabalho.
A partir das análises documentais e das entrevistas, foi realizada uma categorização dos repertórios simbólicos sobre aspectos identitários relacionados ao Idaf. Fala-se, portanto, em configurações identitárias, visto que aqui se utiliza um conceito que privilegia a concepção das identidades como fluidas e dinâmicas.
Assim, os repertórios simbólicos identificados na análise foram dispostos em agrupamentos de categorias, ou núcleos simbólicos. Cabe destacar que essa disposição partiu de um questionamento central feito aos gestores entrevistados, qual seja, demandou-se, na caracterização de diferentes elementos identitários da organização estudada, a comparação do Idaf com outras organizações. Pediu-se para que eles refletissem sobre o Idaf em relação a si mesmo e em relação a outras organizações. A partir daí, as falas foram agrupadas nos repertórios e refinaram-se os achados até que se chegasse aos dois núcleos simbólicos centrais.
Chegou-se, nesse âmbito, especialmente a partir das premissas de identificação e distintividade (Cuche, 2002), a dois núcleos simbólicos centrais. São eles: o chamado "Idaf Igual", que compreende os achados nas entrevistas de características entendidas pelos gestores como aquelas que o Idaf possui de maneira semelhante a outras instituições; e o que se chamou "Idaf Diferente", correspondente a características do Idaf entendidas pelos gestores como as que o tornariam único enquanto organização, ou seja, não seriam compartilhadas com outras organizações.
Nos núcleos simbólicos, foram reunidas categorias de significados conforme o Quadro 2.
Quadro 2 – Categorias de análise
Configuração Identitária |
Categoria |
O Idaf Igual |
O Apego às Rotinas |
O Apego ao Poder |
|
O Idaf Diferente |
Fiscalização: Uma Atividade de Estado |
Onipresença: O Idaf em Todo o Estado |
|
Ecletismo: Várias Atribuições, Um Único Órgão |
|
Inovar é Realmente Preciso? O Idaf e a Informatização |
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Um Órgão Estratégico sem Planejamento Estratégico |
Fonte: Dados da pesquisa.
A seguir, são discutidos e analisados os dados conforme as categorias abordadas aqui.
A presente categoria foi uma das inicialmente destacadas da literatura, a partir das descrições do modelo burocrático e sua disseminação por diferentes contextos, especialmente no setor público (Secchi, 2009), na medida em que se destaca pela centralidade das normas e instituições formais (Weber, 1999). De fato, é possível dizer que o apego às rotinas apareceu, nas entrevistas, como uma categoria relacionada às organizações públicas (por isso a percepção de similaridade, inerente à simbolização do “Idaf igual”) e aproximada ao dever de cumprimento da legislação vigente. É importante destacar que se entende por rotina as atividades cotidianas do servidor, relativamente frequentes e que são executadas sem muita alteração entre si.
O Idaf, por ser um órgão estadual de fiscalização e controle, tem diversas rotinas definidas em âmbito estritamente legal. Um exemplo é a atividade de fiscalização de agrotóxicos, que tem seus procedimentos detalhados no Decreto Estadual nº 024-R de 23 de março de 2000, alterado pelo Decreto Nº 1.106-R de 03/12/2002 e na Instrução de Serviço nº 002-N de 12 de março de 2004. Tais regimentos determinam, em detalhes, o que deve ser fiscalizado em termos do comércio de agrotóxicos, sua aplicação nas lavouras e destinação após o uso, bem como de que forma deve ser feita tal fiscalização.
Segundo os gestores entrevistados, uma vez que o Idaf é tido como um órgão tipicamente de fiscalização, as atividades do órgão devem seguir a máxima "o que a legislação nos manda, nós temos de fazer" (Entrevistado 4). Então "cabe ao Idaf aplicar a legislação em ‘n’ situações" (Entrevistado 4) "porque as atividades [...] [são] uma atribuição por lei, então fiscalizar floresta é uma atribuição, a fiscalização florestal é uma atribuição por lei" (Entrevistado 2).
Nesse sentido, por conta da importância dada às atribuições legais que são relacionadas pelos gestores à repetição indistinta das tarefas executadas no âmbito da organização, é possível identificar que a rotina, em virtude das determinações legais, é vista como uma formalização necessária. Contudo, é interessante observar que, nas falas de campo, tal a repetição indistinta possa significar perda em termos de eficiência, o que os entrevistados também associam a similaridades com o restante do setor público, comumente associadas à ideia de disfunções burocráticas (Merton, 1997). Esse aspecto pode ser observado, por exemplo, quando o Entrevistado 4 argumenta: “[...] não sei se felizmente ou infelizmente, nós enquanto instituição pública temos que fazer tudo que está previsto em lei, nós não podemos fazer nada que esteja fora do arcabouço legal para aquela atividade”.
Sendo assim, além da perda da eficiência com a repetição exaustiva e a atenção estrita a questões legais, há gestores que questionam também a dificuldade em se operarem mudanças na organização. O argumento dos gestores evidencia um apego às rotinas indo, muitas vezes, além das determinações legais, na medida em que se ressalta que “vários ritos são seguidos há muito tempo e nunca se parou para refletir porque que a coisa é feita daquela forma.” (Entrevistado 1). Tal percepção alinha-se ao entendimento de Pahins (2012), para quem o setor público se constrói a partir da superposição de práticas de gestão pertencente a diferentes modelos, sem necessariamente haver reformas ou mudanças estruturais.
É possível interpretar essa dúbia relação com os procedimentos a serem seguidos (por um lado, como necessidade e, por outro, como apego desnecessário) como uma maneira de lidar com a própria rotina da organização. Essa aparente contradição pode sugerir que o apego às regras e rotinas represente um subterfúgio para que não haja mudanças, ou seja, o servidor preserva-se avesso a mudanças na sua rotina e se justifica dizendo que essa é a forma tradicional de se fazer, explicitando uma aversão ao novo como uma das características da administração pública (Saraiva, 2002; Chu & Wood Júnior, 2008).
Dessa forma, a visão dos gestores entrevistados evidencia um apego às rotinas como algo que "garante" a realização da atividade de forma padronizada, no tempo ideal e por profissionais com competência para aquela atividade. Essa interpretação segue o ideal burocrático weberiano, marcado pela formalidade, impessoalidade e formalismo (Weber, 1999). Conforme o Entrevistado 3: “[...] O licenciamento na área rural que não eram atividades do Idaf, e isso veio então, o Idaf teve de fazer todo um sistema de adequação interna para receber as atividades, muitas delas não estavam normatizadas [...] isso o Idaf preocupou-se”.
Apesar disso, verifica-se certo incômodo quando essas características são ressignificadas negativamente pela população e pelos usuários. Observa-se certo questionamento das formas como os procedimentos e atividades são realizados, contudo argumenta-se que há pouca liberdade para essas mudanças.
Assim, o apego às rotinas é visto pelos entrevistados como uma característica que aproximaria o Idaf a outras instituições públicas. Nesse sentido, Pires e Macedo (2006) já apresentavam o apego a regras e rotinas como uma das principais características da administração pública. Para os autores, esse aspecto é fundamental para a formação da identidade em organizações desse tipo.
Ainda que haja incômodo na necessidade de desenvolver as atividades seguindo o que determina a lei: “não sei se felizmente ou infelizmente, nós enquanto instituição pública temos que fazer tudo que está previsto em lei.” (Entrevistado 4, grifo nosso), seguir rotinas leva, de certa forma, a uma segurança sobre a atividade desenvolvida. Uma vez que é demandado de agentes públicos o cumprimento estrito da lei, desempenhar atividades exatamente da mesma forma que anteriormente, atendo-se às regras entendidas como corretas, pode representar algo que une diferentes organizações de âmbito público.
Esta categoria revela características que, segundo as falas dos entrevistados, podem ser associadas a um servidor público, agente que precisa seguir as rotinas tal como elas são. Quanto ao exposto, Bresser Pereira (1996) já indicava que uma das formas da manifestação do burocratismo na administração pública é o formalismo de procedimentos que, no limite, pode inclusive levar ao engessamento da administração.
Em termos do contexto da defesa sanitária e da fiscalização agropecuária, em que organizações públicas como o Idaf e o Iema se encontram, o apego às rotinas revelou-se, nesse sentido, em vários momentos. Um exemplo ilustrativo ocorre na narrativa de alguns entrevistados, que explicaram que tiveram por obrigação receber e desempenhar atividades antes cabíveis a outros órgãos, mesmo com a oposição do gestor em acolher tais atividades pelo apego à rotina anterior: “você recebe atividades de outro órgão, [...]. Então eu não vejo de forma positiva. [...] Isso acaba atrapalhando, acaba prejudicando você ter que fazer um serviço de qualidade para a sociedade.” (Entrevistado 3). Portanto, essa característica é entendida como presente no contexto, mas devida não às funções desempenhadas pelos órgãos, e sim à natureza pública das organizações.
Analisada a presente categoria em termos de seu papel para a constituição da identidade do Idaf na visão dos gestores entrevistados, e como ela se relaciona com as transformações no contexto da agropecuária, será analisada, no próximo tópico, a categoria denominada Apego ao Poder.
O repertório simbólico analisado nesta categoria é representado pelo poder formal atribuído aos chefes, e manifesta-se na análise no modo como a permanência dos chefes no cargo de gestores de suas áreas é relativamente estável. Com isso, é esperado, tanto por parte dos chefes quanto dos chefiados, que não haja mudanças correntes nas chefias.
Embora a troca constante de chefias seja comum em algumas organizações públicas, o simbolismo do “gestor perene” no Idaf é forte, por diferentes peculiaridades manifestas nos dados coletados. Um exemplo de peculiaridade é o fato de os cargos serem ocupados pelos próprios servidores e, como consequência disso no Idaf, os vínculos pessoais entre chefes e chefiados é uma característica importante a se considerar quando da escolha e nomeação de um chefe.
No Idaf, a identificação de um cargo de chefia acaba por confundir-se com a identificação do próprio gestor que está investido naquele cargo, algo que contraria princípios burocráticos básicos, como a impessoalidade (Weber, 1999), mas fenômeno relatado em organizações públicas brasileiras por autores como Motta (2007) e Freitas (2009). Isso significa que, no âmbito da organização, demandar um chefe em virtude de seu cargo ou demandar pessoalmente o sujeito que ocupa o cargo de chefia tem significados muito próximos para esses sujeitos. Além disso, circula a representação de que nenhum outro sujeito poderia substituir aquele chefe, pois somente ele poderia ocupar aquele cargo, e somente ele teria a possibilidade de ser indicado politicamente para ser chefe.
Observa-se, pois, um entrecruzamento entre a identificação da pessoa e do cargo que ela ocupa, tal como proposto por Bresser-Pereira (2001) como uma das manifestações do personalismo nas organizações públicas. Assim, o poder mantém-se centrado na figura de um líder e os liderados não esperam que a ordem social e administrativa possa ser diferente. Esse tipo de gestão implica quase na personalização da organização através do gestor. Ou seja, quando alguém precisa de algo da organização que é realizado pelo gestor, não procura a organização, e sim a pessoa do gestor com a possibilidade de não se saber o que fazer caso ele não esteja presente.
Não obstante, outra característica também elencada nas falas de campo, como apresentado ao final deste parágrafo, evidencia que o poder do chefe dentro da administração pública difere de outras organizações. Segundo os gestores pesquisados, enquanto em outras organizações seria possível gerir pessoas por meio de premiação do bom trabalhador e punição do mau funcionário, por vezes até com a demissão, no setor público isso seria muito mais limitado. Justamente por se tratar de uma característica comum à administração pública, os gestores a escolheram como semelhante a outras organizações do setor. Assim, instrumentos para premiação ou punição são descritos nas entrevistas como muito limitados: “hoje a gente tem uma dificuldade grande de convidar servidores para assumir uma chefia porque não tem uma remuneração adequada, a remuneração não é tão boa perante o tamanho da responsabilidade que esse servidor vai assumir” (Entrevistado 5). O pesquisado continua: “o grande desafio do gestor [...] é não ter as mãos e os pés amarrados que te permita tomar decisões mais rápidas a respeito dessa gestão de pessoas, aumentos, promoções, demissões, qualquer coisa nesse sentido”.
Outro ponto que merece destaque, nesse sentido, diz respeito às mudanças no contexto agropecuário que implicaram alterações de estrutura, atribuições e finalidades entre as diferentes organizações que o compunham. Sem a prática da alternância de poder nas chefias, estas se mostram detentoras de força para apoiar ou não uma mudança sem a pressão da perda do cargo:
A Clam [Comissão de Licenciamento Ambiental] é um exemplo, a Clam foi uma comissão criada para poder incorporar atividades que vieram de outra instituição. Eu vejo isso de forma negativa, eu acho que o Idaf já tem atividades demais, e problemas demais para poder trabalhar. Eu acho que essas incorporações, elas acabam prejudicando. (Entrevistado 3).
Alguns dos aspectos presentes na fala anterior remetem a características discutidas por Bresser-Pereira (1996) e por Secchi (2009) como “administração engessada”, uma manifestação do burocratismo que está presente nas organizações públicas brasileiras.
Tem-se, pois, dentro da mesma categoria, duas visões heterogêneas apresentadas pelos gestores, que podem mostrar lados diferentes de uma mesma vertente do apego ao poder: a do chefe que não pode ser substituído pelo motivo de ter se formado uma proteção ao cargo de gestor por seus colegas de trabalho, e a do chefe que não pode ser substituído por falta de opções.
Essas são as duas categorias analisadas para o repertório simbólico “O Idaf Igual”. No próximo tópico serão analisadas as categorias do repertorio simbólico “O Idaf Diferente”.
Os simbolismos relacionados à ação de fiscalizar mostram-se presentes nas falas dos gestores do Idaf. De fato, desde a criação da instituição, nota-se forte vínculo do órgão com as atividades de fiscalização. Na lei de criação do Idaf, no artigo que trata de suas atribuições, pode-se observar o destaque para as atividades de fiscalização:
Art. 11 - Ficam alterados os objetivos do Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Espírito Santo, que passa a ser entidade responsável pela execução da política de inspeção, fiscalização e defesa das atividades agropecuárias, florestal e pesqueira [...]. (Governo do Estado do Espírito Santo, 1996).
Notoriamente, os gestores do Idaf, principalmente aqueles diretos da área finalística, também podem atuar como fiscais, visto que são servidores investidos em cargos aos quais se incumbe atuar na fiscalização agropecuária e florestal e que foram, posteriormente, colocados em posição de chefia na organização. Nesse aspecto, é possível afirmar que os gestores evidenciam um sentimento de pertencimento ao grupo "fiscais" que, em dados trechos de sua fala, mostra-se mais forte que a inserção deles no grupo de gestão, algo que acaba tendo implicações na construção identitária da organização, uma vez que gera fragmentações internas em termos da simbolização dos que pertencem ou não à categoria profissional de fiscais. Essas fragmentações estão previstas na concepção teórica de Pimentel e Carrieri (2011), para os quais a identidade pode se compor em construções compartilhadas, ainda que remetam a significados nem sempre homogêneos.
Porém, na visão dos gestores entrevistados, a atuação como fiscais, embora seja uma realidade, não é reconhecida pelo Estado. Esse reconhecimento como fiscais é uma busca do grupo, uma vez que o nome dos cargos, em geral, não explicita essa atividade fiscalizatória. Além disso, no Idaf, todos os cargos de mesmo nível de escolaridade possuem o mesmo plano de cargos e salários, o que leva o servidor que atua como fiscal a receber o mesmo salário de um servidor da área-meio, por exemplo. O argumento para a necessidade de um salário maior apareceu atrelado, nas entrevistas, a uma maior periculosidade e responsabilidade da função, como pode ser visto na fala do Entrevistado 1:
[...] equipes técnicas reclamam que deveriam ter um plano diferenciado, porque fazem a parte de fiscalização, ficam no sol, na câmera de frigorífico, anda no meio do mato, sujeito a cobras e outros bichos mais, têm uma série de níveis de periculosidade em estar desenvolvendo as atividades de fiscalização, mas que não recebem um diferencial por isso, então, acho que é uma grande disparidade que a gente percebe, inclusive é motivo de desentendimentos internos. (Entrevistado 1).
Há, ainda, um simbolismo relacionado ao exercício de poder embutido na atividade fiscalizatória, considerada pelos gestores como uma atividade de estado, visto que somente o estado a pode exercer. Um dos entrevistados chegou a relacionar o poder fiscalizatório em algumas de suas falas como “poder de polícia”, em seu discurso relacionado com o ato de fazer cumprir ou de penalizar algum fiscalizado quando necessário.
Esse simbolismo relacionado ao “poder de polícia” está arraigado na instituição, tanto nos discursos como quanto nas próprias vestes dos fiscais. O colete usado pelos fiscais de fiscalização lembra muito aqueles usados pela polícia federal, similarmente ao que ocorre com a carteira de fiscalização.
O Idaf é, em geral, reconhecido como um órgão fiscalizador pela sociedade em geral e assim apresentado pelos gestores; ser fiscal, portanto, é algo que faz parte da identificação dos gestores e também da imagem da organização difundida na sociedade. É essa a visão interna da identidade mais forte explicitada pelos gestores entrevistados e que distingue o Idaf das outras organizações, apesar dos paradoxos e contradições observados. Na atividade de fiscalização evidencia-se a distintividade apontada por Albert e Whetten (1985) e o não pertencimento apontado por Machado (2003). Se, por um lado, existem outros órgãos fiscalizadores na administração pública, por outro os gestores do Idaf o apresentam com essa característica diferenciadora.
No próximo tópico será analisado outro aspecto de distintividade, a categoria da distribuição geográfica do Idaf pelo estado todo.
O Idaf possui pontos de atendimentos em quase todos os municípios capixabas[1], característica que, na visão dos entrevistados, o coloca como um órgão diferenciado. Essa diferenciação ocorre em relação ao órgão estadual de meio ambiente, o Instituto Estadual de Meio Ambiente, Iema, e também em relação aos órgãos de outros estados com atividades similares. Tal determinação geográfica, através da capilaridade da atuação do órgão, implica construções identitárias próprias, diferenciando a organização em relação às demais e incluindo a percepção do órgão como único e diferente (Nogueira, 2007).
Corroborando a afirmação, o fato de o Idaf estar em todo o estado é apontado como motivo para que algumas atividades possam ser transferidas do órgão ambiental para o Idaf. Um dos entrevistados, por exemplo, explica que as atividades de licenciamento ambiental mais ligadas ao produtor rural foram corretamente transferidas do Iema para o Idaf, porque tal atividade exigiria muita interação com o produtor rural, e essa interação ficaria prejudicada se o produtor rural, do interior do estado, precisasse ir até a capital sempre que necessitasse de algum serviço relacionado.
Quando comparado com órgãos similares de outros estados, a característica de estar presente em todo o estado também aparece como elemento diferenciador do Idaf: “nenhum outro estado tem essa configuração que a gente tem de ter escritório em todos os municípios, então [...] a gente consegue ter êxito em algumas questões que alguns outros estados ainda estão engatinhando” (Entrevistado 1).
Nessa categoria, o Idaf é reforçado, nas falas dos gestores, como um órgão de onipresença dentro do estado. Isso o tornaria único, inclusive em termos identitários, e o distinguiria de outras organizações, segundo as falas dos entrevistados, tanto do sistema da agricultura e meio ambiente do próprio estado, quanto dentre os órgãos que desempenham atividades similares em outros estados.
Dessa forma, os gestores entrevistados justificaram o agrupamento das atividades no órgão utilizando a característica de atividade que precisa estar próxima ao homem do campo, ainda que essas atividades não tenham muita afinidade e correlações entre elas, como se analisará no tópico seguinte.
O Idaf é apontado como um órgão com uma multiplicidade de atribuições muito grande, incluindo atividades que não necessariamente possuem correlações umas com as a outras. Na visão de um dos entrevistados: “você pega dois departamentos, um da área animal, outro da área vegetal, que têm uma mesma missão [...] as outras áreas são objetivos distintos [...] que não têm nada a ver com os objetivos de defesa” (Entrevistado 3).
Nas falas dos gestores entrevistados, isso pode ser considerado tanto uma característica positiva quanto negativa. Ela é considerada positiva, do ponto de vista da economicidade de recursos, nos momentos em que é usada como justificativa para se ter a presença de todas essas atividades em todos os municípios, com uma pequena quantidade de profissionais.
Já como característica negativa, a multiplicidade de atribuições é apontada como inconveniente e que provoca conflitos internos dentro da organização e, por isso, houve inclusive considerações de que o Idaf deveria ser dividido em mais de uma organização como forma de melhorar a gestão.
A configuração identitária como um processo compartilhado de significados (Borges & Medeiros, 2011) pode ser observada quando os entrevistados se manifestam semelhantemente acerca da significação das funções de fiscal, ou da imagem e representação identitária da organização; todavia, nota-se que os significados compartilhados não são homogêneos. Ao mesmo tempo em que há a concordância de que o Idaf possui uma diversidade de atividades e responsabilidades, há opiniões divergentes se isso é favorável ao órgão ou não. A questão da identidade respondida pela pergunta “Quem sou eu?” (Mead, 1967), apesar de bem respondida de forma similar pelos entrevistados, apresenta problematizações com relação a se “o que sou” é realmente o que “eu deveria ser”, conforme observado nas falas anteriormente apresentadas.
As questões relacionadas a atribuições da organização não estão limitadas ao sucesso ou insucesso do órgão em executar essas atividades, mas sim por considerarem tais atividades estrangeiras à organização. Nas palavras do entrevistado 3, por exemplo: “para melhorar mais ainda nosso trabalho e para a gente ter uma gestão estratégica na instituição eu acho que até que a defesa agropecuária deveria ser uma agência à parte”. As falas de alguns entrevistados indicam que algumas atividades deveriam estar em organizações diferentes, ainda que tais discursos representem o Idaf como uma organização competente para desempenhar todas elas.
Serão apresentadas no tópico seguinte as relações do Idaf com a informatização e como se constitui a identidade com base nessa informatização segundo os gestores.
De acordo com relatos obtidos durante a pesquisa, o Idaf possui duas grandes áreas informatizadas: o Departamento de Recursos Naturais Renováveis (DRNRE) e o Departamento de Terras e Cartografia. Isso significa que a maioria das atividades desses departamentos é desenvolvida com o apoio de um software no qual é registrado todo o trabalho, de forma que se pretende informatizar todo o restante do órgão.
Assim, o “Idaf informatizado” possui um sistema de TI desenvolvido para atender a área de recursos naturais renováveis e também à área de legitimação de terras e cartografia. Essas duas áreas encontram convergência no uso das ferramentas de TI desenvolvidas: “boa parte do órgão [área de recursos naturais e a área de legitimação de terras e cartografia] já tem uma infraestrutura de TI e de um sistema de informação bem robusto. Então, isso foi um divisor de águas dentro do órgão” (Entrevistado 1).
Por outro lado, identificou-se uma contradição nas falas dos entrevistados. Segundo alguns deles, há um fraco desempenho percebido da infraestrutura do órgão no que se refere à TI, e a principal percepção dessa fraqueza é o desempenho da rede de internet implantada pelo Idaf para atender às unidades descentralizadas por todo o estado.
Isso identifica a organização como de pouco desenvolvimento no que se refere à TI, o que pode parecer um paradoxo, mas que são duas visões distintas da informatização apresentadas, com base em argumentos fundamentados em percepções dos gestores entrevistados, de distintos recursos da área de tecnologia da informação. Se, por um lado: “no interior, [...] a [baixa] velocidade de conexão da internet [...] para inserir a informação, fazer o que tem de ser feito e dar o retorno à sociedade” (Entrevistado 4), é a visão da informatização para um dos entrevistados, por outro: “grandes profissionais da tecnologia da informação reconhecendo que o nosso sistema foi de fato inovador e foi diferenciado” (Entrevistado 1), é a visão de outro entrevistado.
Isso revela, novamente, uma configuração identitária vista pelos gestores como um processo compartilhado, não homogêneo, dos significados construídos a respeito da organização, conforme defendido por Borges e Medeiros (2011). As várias visões compartilhadas da informatização do Idaf se baseiam nas mesmas características observáveis, porém, cada entrevistado escolheu atribuir maior importância a aspectos diferentes da informatização, levando à contradição apresentada.
Apesar disso, o nível de informatização do Idaf contribuiu tecnicamente para que outras atividades, aquelas transferidas de outros órgãos, pudessem ser incluídas no rol de atividades desenvolvidas pelo Idaf. Por um lado, a informatização oferece uma forma padronizada de registro das atividades e um controle maior, e por outro se tem que, uma vez consolidadas, essas novas atividades dentro do Idaf, já não faz mais sentido retirá-las do órgão, pois estão sendo controladas pelos sistemas informatizados do Idaf. Portanto a informatização contribuiu para uma maior aceitação das atividades vindas de outros órgãos e, consequentemente, para uma menor rejeição dessas atividades.
Após apresentadas as análises acerca da informatização na visão dos gestores, serão apresentadas no próximo tópico as análises sobre a categoria da visão dos gestores sobre o planejamento estratégico da organização.
As falas dos gestores significam o Idaf como um órgão altamente importante para o estado, um órgão estratégico. Nas falas obtidas em campo: “O Idaf tem programas fantásticos [...] eu acho que nós do Idaf, não tivemos ainda a condição financeira de mostrar à sociedade a importância do trabalho que nós desenvolvemos” (Entrevistado 4). Ainda: “O Idaf é tão importante que nenhum projeto é instalado sem que algum técnico nosso vá lá” (Entrevistado 1) e “Então, eu entendo o Idaf como uma instituição extremamente importante e estratégica para o estado” (Entrevistado 3).
Contudo, destaca-se que essa importância refere-se a uma relevância do ponto de vista do Estado e não necessariamente do Governo do Estado. A importância restringe-se aos benefícios propiciados pela instituição à população e ao território estadual, mas que, segundo os entrevistados, é pouco reconhecida pelos governantes.
O Idaf existe, na visão dos entrevistados, como um órgão para cumprimento de políticas de Estado e não para cumprimento de políticas de governo. As políticas de governo até atrapalhariam, em alguns momentos, o bom desenvolvimento das atividades do órgão. Nesse sentido, possíveis influências políticas nas atividades desempenhadas pelo órgão são citadas como dificultadas: “coisas que são extremamente comuns nas atividades de defesa que é você interditar uma propriedade, ou interditar um estabelecimento de abate de animais [...] você tem muita influência de fora” (Entrevistado 3).
Apesar disso, a grande importância estratégica das atividades do Idaf para o estado do Espírito Santo, segundo os entrevistados, o tornaria supostamente “blindado” às políticas de governo, quando elas têm influência negativa nas atividades do órgão, pois “o governo não tem muito como mexer, porque as atividades, ela é uma atribuição por lei” (Entrevistado 2). Por outro olhar é possível verificar que a fala do Entrevistado 2 mostra que a função do Idaf não pode ser eliminada, ou alterada, pelo governo por questões políticas porque, ao fazer isso, o governo estaria agindo de forma ilegal.
Observa-se, nas falas dos entrevistados, uma heterogeneidade quando se trata de influências políticas externas; enquanto há discursos que afirmam haver esse tipo de influência, alguns outros simbolizam o Idaf como “blindado” a esse tipo de influência, por se tratar de um órgão que precisa cumprir a legislação.
Pode-se notar na análise aqui empreendida que o Idaf reveste-se de importância política que não pode ser descartada pelos governos e está relacionada ao caráter fiscalizatório da organização. Esse caráter faz com que o governo o veja como uma ameaça à implantação de alguns projetos do próprio governo que dependem de ações do Idaf.
Ainda com a importância estratégica observada nas falas dos gestores, o Idaf não possui um planejamento estratégico, que, na visão dos gestores, seria fundamental para que o órgão pudesse melhorar sua gestão. A visão de futuro do Idaf na percepção dos gestores é ter um planejamento estratégico. O “planejamento estratégico seria, seria não, vai ser importante. Têm muitas coisas que acontece no Idaf que vem lá da década de 60” (Entrevistado 1).
Aqui, novamente, pode-se apontar uma contradição nas falas uma vez que, como vimos nas outras categorias, o Idaf é apontado como sendo uma organização com uma diversidade muito grande de atividades, e essas atividades muitas vezes não têm correlação umas com as outras, o que possivelmente poderia ser abrandado com um planejamento estratégico. Não ter planejamento estratégico pode ser uma forma de garantir que a grande diversidade de atividades sem correlação umas com as outras sejam mantidas no Idaf, uma vez que, em geral, o planejamento estratégico tradicional busca focar a linha de atuação de uma organização.
Assim, não ter um planejamento estratégico orienta as ações dos indivíduos na organização levando a configurá-la de uma maneira específica e provavelmente distinta daquela que seria se o Idaf tivesse um planejamento estratégico. O que o Idaf é tem muita relação com essa característica, visto que um planejamento estratégico pode levar o Idaf a ter um foco mais centrado em algumas atividades e eliminar outras que deverão ser levadas para outros órgãos do estado.
Dessa forma, tendo interpretado os dados, apresentam-se, no próximo tópico, as considerações finais, seção na qual se evidenciam as principais considerações decorrentes da análise dos resultados.
Retomando o objetivo deste trabalho, que foi o de compreender as relações entre as transformações no contexto da defesa sanitária e inspeção agropecuária e as configurações identitárias manifestadas por gestores, podem-se tecer algumas considerações após a realização das análises dos dados coletados.
A partir da análise documental empreendida, foi possível mapear duas grandes transformações contextuais pelas quais o Idaf passou. A primeira diz respeito à inclusão de novas atividades ao rol de atribuições do órgão (ainda que, na visão dos entrevistados, o Idaf não estivesse preparado para tal), e a segunda alteração corresponde a alterações estruturais, retirando do Idaf e incorporando ao Iema novas unidades e funcionários. Tais transformações não afetaram apenas a organização, mas todo o contexto da inspeção sanitária e fiscalização agropecuária, uma vez que as alterações se deram em relação a outros órgãos pertencentes ao referido contexto. Sendo assim, o novo panorama contextual implicou novas estruturas e formas de geri-las, além da necessidade de capacitação e ajuste frente a novas demandas. Essas transformações puderam ser relacionadas a rearranjos do ponto de vista identitário, de forma que novas compreensões sobre o que a organização é e como ela se enxerga e percebe emergiram e foram ajustadas às já existentes.
É interessante destacar que, da análise dos documentos, evidenciaram-se primeiramente os marcos históricos das mudanças identitárias referidas pelos entrevistados, mas, além disso, os diferentes papéis e espaços reservados ao Idaf no contexto político e social de cada época, principalmente por meio de suas atribuições e responsabilidades.
Com base nos dados analisados, chegou-se a duas configurações identitárias centrais que remetem ao sentimento do entrevistado do que se considera ser o Idaf enquanto organização, bem como o que se considera não ser o Idaf. O achado encontra arrimo nos estudos de Machado (2003) e Cuche (2002), autores que compartilham o entendimento de que uma identidade é construída a partir do movimento dialético de pertencimento e não pertencimento. Nesse movimento dialético em relação a outras organizações do contexto restrito (inspeção sanitária e fiscalização agropecuária) e geral (setor público), foi possível desvendar a emersão de construções identitárias mais ou menos fragmentadas, ligadas às mudanças contextuais que fizeram com que o Idaf se visse como diferente e igual em relação ao contexto, na visão dos gestores entrevistados.
Na configuração “O Idaf Igual”, interpretaram-se as categorias “apego às rotinas” e “apego ao poder”. Embora essas categorias possam estar presentes em todos os tipos de organização, elas foram apontadas pelos entrevistados como características que aproximam o Idaf de outras organizações públicas, não apenas as pertencentes ao contexto da defesa sanitária e inspeção agropecuária. Assim, essas categorias identificam o Idaf como uma organização pública e permitiram, segundo os gestores, que o ele aceitasse algumas alterações estruturais sem muita rejeição.
Outras categorias de análise foram mapeadas com base na percepção dos gestores com relação ao que torna o Idaf diferente de outras organizações do contexto. A distinção configura-se, igualmente, como uma das principais características da identidade organizacional, na medida em que viabiliza aos membros da organização o desenvolvimento de um senso de unicidade e distintividade da organização em relação às demais (Nogueira, 2007).
A organização Idaf tem um caráter fiscalizatório que é visto pelos gestores com o que distingue essa organização das demais. Para os gestores entrevistados, o simbolismo do fiscal agropecuário é mais forte que o próprio simbolismo da gestão, o que pode ter explicação na busca do reconhecimento da carreira de fiscal agropecuário no estado. Assim, o caráter fiscalizatório contribuiu para que algumas atividades de fiscalização, que têm forte identificação com o Idaf, fossem transferidas de outros órgãos para o Idaf. A fiscalização é, portanto, central para o Idaf e balizou decisões da formação do órgão e de suas relações dentro do contexto agropecuário.
A presença do Idaf, na maioria dos municípios do estado, é uma característica tida como diferenciadora dos outros órgãos e que aproxima o Idaf de seu usuário. Além disso, seria algo com influência na formação da autarquia, visto que algumas atividades passaram a ser de responsabilidade do Idaf com a justificativa de que o usuário da atividade precisava que ela estivesse acessível na cidade onde o usuário está.
Os entrevistados identificam o Idaf como um órgão com a possibilidade de realizar uma grande diversidade de atividades, em virtude da formação de seus profissionais. Isso contribuiu decisivamente para que as atividades vindas de outros órgãos fossem incluídas a atividades já existentes no mesmo e realizadas com pouca rejeição, mesmo não existindo afinidade entre essas atividades.
Para os gestores entrevistados, o esforço de informatização trouxe uma grande satisfação aos funcionários do Idaf pelas premiações recebidas, e essa satisfação é vista pelos gestores como sendo de grande relevância “definindo” o Idaf como uma organização que se preocupa com os aspectos da informatização.
E, por fim, a concepção da organização como um órgão sem planejamento estratégico atuou contribuindo para as modificações referentes ao contexto da agropecuária no que se refere ao Idaf. A falta de um planejamento estratégico remete a uma menor de clareza quanto à missão, à visão de futuro e aos objetivos da organização a serem disseminados a todos. Assim, ao receber novas atividades vindas de outros órgãos do contexto agropecuário, não havia como confrontá-las com o planejamento estratégico, já que ele não existia.
Essa falta de planejamento estratégico é considerada pelos gestores como definidora da identidade, pois as outras organizações comparadas possuem planejamento estratégico definido e em uso. Além disso, há pouca esperança de que o Idaf irá fazer o seu planejamento estratégico, apesar da grande importância atribuída a ele pelos gestores, o sentimento é que a falta de planejamento estratégico será duradoura ao menos durante algum tempo.
As transformações contextuais, que implicaram adaptações estruturais, gerenciais e em termos de capacidades e competências de seus funcionários, alteraram também as formas de autopercepção da organização, de acordo com as falas dos entrevistados. A aceitação das mudanças de forma passiva implica uma construção identitária de órgão público, na medida em que isso é o entendido como a correta aplicação da lei e da norma; as dificuldades inerentes ao setor público são respondidas pela organização, tradicionalmente, com a perenidade dos gestores em seus cargos, o que foi reconhecido como algo semelhante a outros órgãos. A identificação com a atuação fiscalizatória dá-se na medida em que a organização se afasta, via modificações contextuais, de outras atribuições que anteriormente lhe pertenciam e hoje não mais pertencem; a distribuição geográfica e territorial implica novas demandas no sentido de construir uma identidade coerente, com significados compartilhados mesmo quando as unidades mais afastadas sofrem com tantas dificuldades, como a própria questão da informatização.
Entende-se que o presente trabalho apresentou os estudos de identidade na organização Idaf e contribuiu para a compreensão de suas configurações identitárias na ótica dos gestores dessa autarquia. As categorias descritas e interpretadas à luz do referencial teórico levaram a uma compreensão de como as transformações no contexto da defesa sanitária e inspeção agropecuária se relacionam com as configurações identitárias no Idaf por um olhar dos gestores.
Nesse sentido, pode-se dizer que o presente estudo contribui para o entendimento da visão dos gestores sobre o que é o Idaf enquanto organização e convida a própria organização a refletir sobre essas configurações identitárias, interpretada com base nas falas dos gestores. Espera-se, portanto, que as análises e resultados aqui desenvolvidos possam servir de substrato para discussões sobre configurações identitárias dessa e de outras organizações.
O agir da gestão é impulsionado por essas características, que neste estudo, compõem as categorias de análise trabalhadas.
Este trabalho contribui, ainda, corroborando a concepção interpretativista da identidade como “fluxo e processo de construção e compartilhamento coletivo (porém não necessariamente homogêneo) de significados pelos membros da organização” (Borges & Medeiros, 2011, pp. 134-135). As categorias analisadas foram descritas de forma a contribuir com o entendimento de como se dá essa construção e esse compartilhamento entre determinados sujeitos no locus de estudo.
Como propostas para estudos futuros, uma primeira sugestão é realizar o mesmo estudo tendo como sujeitos os demais servidores da organização, para capturar a configuração identitária com base nesses participantes e realizar uma comparação com as configurações identitárias baseadas nos gestores. Acredita-se que as características singulares desses dois grupos na organização podem levar a novos e relevantes achados, considerando-se, principalmente, as questões relacionadas à atuação fiscalizadora dos gestores e chefiados. Outra sugestão é a aplicação dessa mesma pesquisa em organizações como o Iema e o Incaper, que formam o contexto sanitário aqui compreendido e foram citadas pelos gestores como relevantes na comparação com o Idaf. A partir de tais estudos poderiam ser analisadas, comparativamente, as aproximações e divergências entre os discursos dos gestores de cada organização. Por fim, sugere-se a investigação da identificação dos servidores do Idaf como fiscais agropecuários. O momento é bastante apropriado para tal estudo, visto que nos últimos anos houve um fortalecimento nessa identificação.
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[1] As duas únicas exceções são Piúma, que é atendido no Posto de Atendimento de Iconha, e Marataízes, que é atendido pelo Escritório Local de Itapemirim.