ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE

O poder político-burocrático na Gestão Pública brasileira: uma crítica de seus marcos reformistas à luz de Adorno

Political-bureaucratic power in Brazilian public management: a critical study of the landmarks reformers in the light of Adorno

Elisa Zwick

Doutoranda em Sociologia / Universidade Estadual de Campinas

Professora / Universidade Federal de Alfenas

http://lattes.cnpq.br/3544510018416750

orcid.org/0000-0002-2963-7721

elisa.zwick@unifal-mg.edu.br

 

Resumo: À luz da dialética negativa de Theodor Adorno apresentamos neste ensaio uma análise crítica dos três principais marcos reformistas da Gestão Pública brasileira, integrantes da constelação político-burocrática que sustenta o poder capitalista. Ao pautar desde o Estado Novo até a implementação do Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado em 1995, visualizamos a construção histórica do fenômeno burocrático, perfazendo um exame que engloba burocracia do poder e poder da burocracia. Denunciamos criticamente o emaranhado de negação social presente na incompletude das reformas, revelando o Estado como portador de uma autocentralidade inautêntica ampliada. A leitura adorniana é fundamental para compreender criticamente a conjuntura social e política atual, em que a tomada do poder do Estado por representantes do capitalismo financeiro promove a aniquilação de muitos avanços sociais arduamente conquistados.

Palavras-Chave: Dialética negativa. Burocracia. Antissistema.

 

Abstract: In the light of Adorno’s negative dialectic, we presented a critical analysis of the three main reformist landmarks of Brazilian public administration, which comprise the political-bureaucratic constellation that sustains the capitalist power. Starting from the New State until the Master Plan for the Reform of the State Apparatus established in 1995, we visualized the historical construction of the bureaucratic phenomenon, while making an analysis that includes the bureaucracy of power and the power of bureaucracy. We made a critical denunciation of the social denial tangle that is presented in the incompleteness of the reforms, which depicts the state with an expanded self-centered inauthenticity. Adornian’s interpretation is fundamental to critically understand the social situation and Brazilian actual policy, in which power is being taken by representatives of financial capitalism, promoting the annihilation of many social advances hardly won.

Keywords: Negative dialectic. Bureaucracy. Anti-system.

 

Texto completo em português: http://www.apgs.ufv.br

Full text in Portuguese: http://www.apgs.ufv.br

 


Introdução

“A forma do sistema é adequada ao mundo que, segundo seu conteúdo, se subtrai à hegemonia do pensamento; unidade e concordância são, porém, ao mesmo tempo a projeção deformada de um estado pacificado, que não é mais antagônico, sobre as coordenadas do pensar dominante, repressivo.”  Theodor Adorno (2009, p. 29)

Os vinte anos de implementação do Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado no Brasil conferem ocasião ímpar à análise crítica sobre o quanto, na própria fundamentação das mudanças empreendidas desde o início do Estado burocrático nacional, nunca foi objeto central a extinção das relações de dominação e das desigualdades sociais. A conformação da burocracia pública brasileira avançou historicamente pela adoção de modelos estabelecidos pela classe dominante para governar o Estado. Travestido por diferentes nuances, o domínio político-burocrático da ordem social burguesa impôs, via reformismos, a hegemonia necessária para a permanência do poder nas mãos de poucos. O resultado disso é uma realidade social, política, econômica e cultural encerrada num extenso círculo vicioso que, alimentado pelo alto, corrobora com o que podemos chamar de Gestão Pública danificada[1].

Diante disso, mediados pelos elementos pressupostos na dialética negativa de Adorno[2], neste ensaio apresentamos uma breve análise da constelação[3] político-burocrática da Gestão Pública brasileira, revelando o Estado como portador de uma autocentralidade inautêntica ampliada. Dentre os elementos adornianos que possibilitam a crítica à burocracia destacamos o antissistema, que permite expor a configuração do poder como constelação em que se visualiza tanto sua inverdade enquanto sistema em sua afirmação identitária, quanto a crítica da sociedade que o engendra (Silva, 2006).

Tendo presente a subversão da tradição, Adorno (2009) negou a ideia de sistema, submetendo-a a um acurado exame dos seus pressupostos modelares. Desse modo, a análise necessária sobre a burocracia pública requer a denúncia crítica de seu papel meramente adaptativo que, ao manter e conformar as desigualdades sociais, não permite a ruptura com o conservadorismo naturalizador de suas práticas. Portanto, à luz da dialética negativa, compete-nos: (i) abordar a burocracia do poder no Estado brasileiro, que se desenvolveu em três marcos desde o Estado Novo; (ii) compreender o poder da burocracia, demarcado por malabarismos reformistas que favoreceram o desenvolvimento da estrutura capitalista dependente; e (iii) tematizar a potencialidade do poder político-burocrático, de modo que situamos o democratismo e a estadania como anticategorias do pensamento convencional.

 

1. Construção do Estado Nacional

O intervencionismo é traço inerente ao capitalismo dependente[4] brasileiro que, em sua urgência modernizadora, tolheu manifestações contrárias à sua identidade, de modo a perpetuar pelas vias legais e da formalização, o que Adorno (2009, p. 29) aponta como “unidade e concordância”, aniquilando adversidades e encobrindo contradições. Em seu caráter opressor, o modelo de gestão do Estado é avesso ao não idêntico (Adorno, 2009), sendo incapaz de combater as desigualdades, apenas concedendo às camadas populacionais reparações mínimas aos danos provocados pelo poder do monopólio capitalista.

Diante da construção verticalizada do Estado nacional, a violência dos processos hegemônicos foi demarcada pela injeção de parâmetros empresariais, de modo que a expressão da burocracia se tornou o exercício do poder político da classe dominante (Tragtenberg, 2006). O comportamento desta não advém “de um elemento constituído ao nível da estrutura material da sociedade, (...) [mas] se define como ação essencialmente transitiva de um pseudo-sujeito” (Martins, 1977, p. 53). Tal caráter é reeditado sempre que necessário via governos totalizantes, demarcados pelo autoritarismo, em que não raro manifestações que ameaçam a ordem são reprimidas via recursos legalmente instituídos. Segundo Adorno, (1995), estes só podem ser operacionalizados por consciências coisificadas, cuja conduta por vezes se justifica vergonhosamente em nome das minorias esquecidas e subjugadas.

Sob o manto da neutralidade, burocracia pública e privada são inseparáveis, pois a administração tornou-se “o centro das questões sociais e políticas numa sociedade burocrática” (Motta, 1990, p. 46). Assim, é no Estado que a administração se realiza plenamente enquanto organização formal burocrática, sendo nele antecipada em séculos ao seu advento na empresa privada (Tragtenberg, 1971). A racionalidade burocrática das primeiras fábricas irá propulsionar a constituição do capitalismo monopolista de Estado, pano de fundo dos processos de estatização ou privatização no Brasil na década de 1970, numa clara complementaridade entre capitalismo monopolista e estatização, visto que a atuação das empresas estatais na economia passou a viabilizar as privadas (Garcia, 1979).

Tais moldes correspondem ao andar tortuoso da história de um país colonial, que reúne avanços e atrasos do sistema capitalista, priorizando uma circulação engendrada por uma organização nacional via intervencionismo. Tal qual no processo colonizador, mantiveram-se subjugadas culturas e classes sociais locais para servir duplamente a interesses econômico-financeiros: primeiro das classes dominantes internas, depois das externas. Para Paço-Cunha e Rezende (2015, p. 3), “o capitalismo brasileiro nasce então com uma debilidade congênita, o que se expressa no caráter atrófico do capital aqui constituído, expresso em uma classe burguesa sem capacidade de levar a cabo os desafios do desenvolvimento capitalista”. A autocracia é resultado inevitável de tal debilidade, elemento que, para os autores, é fatal no veto de uma sociabilidade burguesa de cunho moderno progressista.

Este é o pano de fundo para a emergência da burocracia do poder no Estado brasileiro, em que o papel desempenhado pelos organismos criados para manter a hegemonia se torna fundamental, visto que são conceitualmente determinantes ao processo burocratizador. Merecem, por isso, uma desconstrução a partir da crítica social da burocracia do poder, em seu ímpeto de sistema e, portanto, precisam ser desnaturalizados em seus mecanismos de funcionamento, enquanto cumpridoras de um papel conformador à versão oficial da história.

 

1.1.  Burocracia do Poder

Ao relacionarmos a burocracia do poder não queremos remeter à obrigatoriedade de que todo poder tenha como precondição uma burocracia, mas nos referimos especificamente àquela existente no poder do Estado brasileiro, cujo avanço se mostrou pelas reformas via órgãos criados para efetivá-las e promovê-las. Também não distinguimos a burocracia entre aquela que serve ao poder ou outra que poderia estar a serviço das organizações, mas elencamos sua dinâmica interna como parte de uma relação dialética em meio ao social e a organização do Estado.

A configuração do Estado nacional em meados da década de 1930 decorre essencialmente do capitalismo dependente desenvolvido no Brasil, visto que é nesse momento que “as forças econômicas passam a se agrupar em torno de um projeto de modo de produção diferenciado do até então vivido nos três séculos de status colonial” (Mendes & Gurgel, 2013, pp. 108-109). Fernandes (1975) dá especial atenção ao capitalismo dependente por considerá-lo fundamental aos rumos do desenvolvimento do país, tendo sido traçado pelo desinteresse por qualquer autonomia social ou política e pela prioridade aos modelos perpetuados pelas antigas classes senhoriais, em que diferentes setores foram espoliados de

 

fora para dentro, vendo-se compelidos a dividir o excedente econômico com os agentes que operam a partir das economias centrais. De fato, a economia capitalista dependente está sujeita, como um todo, a uma depleção permanente de suas riquezas, (...) [que] se processa à custa dos setores assalariados e destituídos da população, submetidos a mecanismos permanentes de sobre-apropriação e sobre-expropriação capitalistas (Fernandes, 1975, p. 45).

Este entendimento se dá a partir da luta de classes premente na sociedade. Conforme Coutinho, (1984, p. 166), o papel do Estado é “‘tutelar’ os interesses do capital em seu conjunto, colocando-se frequentemente em choque com aqueles setores capitalistas singulares que (...) entram em contradição com a máxima reprodução possível do capital social global”, no qual a burocracia assume o lugar de um corpo à parte e acima da sociedade, capaz de lhe impor suas decisões. À emergência da modernização do período industrial do Brasil, esses pressupostos foram capitaneados pelo próprio Estado, sufocando desigualdades e singularidades em detrimento do desenvolvimentismo.

Assim, a Gestão Pública seguiu pela planificação organizada, num processo de aceleração do desenvolvimento jamais visto nos cem anos precedentes da história do Brasil (Costa, 2008). Ao contrário de uma revolução, como defende Bresser-Pereira (1985), o que houve em 1930 foi apenas uma substituição do poder da oligarquia agrário-comercial brasileira pelo da classe média industrial. Nesta condução, houve uma luta contrarrevolucionária, que reconfigurou o lema “ordem e progresso”, conferindo-lhe, paulatinamente, outro desdobramento pela ideia de “segurança e desenvolvimento”, abertamente empregada pelos governos militares a partir de 1964 (Ianni, 2004, p. 224). O Estado capitalista é aguçado em sua configuração de sistema, dando-nos elementos concretos para seu combate pela ideia de antissistema como um espaço do não idêntico (Adorno, 2009). Isso porque, na sua típica ótica de sistema “o capitalismo monopolista no Brasil (...) se limitou a herdar e modificar parcialmente o Estado autoritário preexistente” (Coutinho, 1984, p. 171).

Nesse momento inicial da industrialização no Brasil, a dimensão político-burocrática do Estado figura como o mais perfeito estereótipo da ideia adorniana de sistema totalitário. Instituíram-se novas estruturas via reformas de Estado, cuja diferença entre as três principais reformas (1930, 1967 e 1995) é que as duas primeiras se deram pela égide de governos autoritários e a última não, o que não impede de pensá-las, em seu conjunto, como expressões de negação das singularidades nacionais, pois convergem aos mesmos fins de manutenção da ordem capitalista, embora os meios sejam diversificados.

A Era Vargas torna-se, então, o marco inaugural de burocratização do Estado brasileiro, que adere a um formato de poder político até então inigualável. Há confluência entre peculiaridades político-sociais e governos autoritários, mantendo vivas as práticas do tenentismo[5] e do populismo[6] e, de outra parte, com o desenvolvimentismo como guia via suas quatro correntes fundantes: nacionalistas, defensores da industrialização, intervencionistas pró-crescimento e do positivismo (Fonseca, 2012).

O nacionalismo, considerado por Tragtenberg (2009) uma ideologia da desconversa, encontra espaço como abordagem típica do Estado Novo. De outra parte, o positivismo, marcante na formação de Getúlio Vargas, imprimiu-lhe uma postura de inspiração hegeliana/teleológica, contribuindo para a autojustificação discursiva para capitanear as mudanças que desaguaram no desenvolvimentismo. Tal projeto assumiu uma configuração utópica de felicidade, que apenas poderia ser materializado pela instituição da razão burocrática no Estado, em que a vertente política da doutrina positivista também conferia as devidas bases ao intervencionismo. Amplificado, o desenvolvimentismo convergia ao liberalismo, no tocante à ortodoxia econômica, potencializando a cega visão economicista (Fonseca, 2012). Essa ótica foi responsável pelo isolamento das condições econômicas das políticas, firmando-se como modelo de condução do Estado, o que Oliveira (2003, p. 30) critica como um “vício metodológico que anda de par com a recusa em reconhecer-se como ideologia”.

O “legado da Era Vargas” foi “inseparável das instituições que ajudaram a direcionar o desenvolvimento econômico e social posterior do país”, cujo empenho era justamente a centralização do Estado (Bastos & Fonseca, 2012, pp. 9-10). Daí o papel do DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público), primeira e principal agência propulsora do desenvolvimento de tipo prussiano no Brasil. Criado em 1938, foi o principal órgão burocrático desse primeiro marco reformista da Gestão Pública brasileira e a mais importante instituição que ancorou sua sistemática modernizadora.

Getúlio Vargas vale-se do modelo daspiano em parte seu primeiro governo ditatorial – que perdurou de 1930 a 1945 –, inserindo o país no que considera uma grande reforma administrativa, centrada no intervencionismo, na meritocracia (concursos públicos são institucionalizados pela Constituição de 1934) e na criação de uma burocracia para produção de políticas públicas. Ao mesmo tempo em que o órgão fomentou as autarquias, fundações e outras instituições sob o pretexto da descentralização, o Estado varguista intervia nas atividades econômicas consolidando o DASP como instrumento assegurador dos propósitos do governo. Assim, de supostamente neutro em sua técnica, na prática o DASP controlou administrativamente todo o emaranhado decisório do Estado, assumindo um importante papel político-burocrático, acabando por distanciar o governo da sociedade. Totalizante e autoritário, esse protótipo de governo era justificado pela necessidade de separar a administração da política. Ao anunciar o combate ao clientelismo e ao patrimonialismo, mantinha-os ao mesmo tempo via insulamento burocrático, alçando uma modernização administrativa com adaptações a grupos de interesses, seguida no governo de Kubitschek.

Para Bariani (2010, p. 60), o DASP, em seu ímpeto modernizador, teve contribuições que permitiram avanços na Gestão Pública, porém a administração burocrática não vingou, parecendo um modelo abstrato, não porque “seus princípios seriam totalmente inadequados às nossas circunstâncias, mas sim porque nossas instituições não ‘pairam no ar’, mas se inserem em nossa sociedade”. Assim, o populismo é marca patente do governo Vargas e se amplia com Kubistchek, que omite a subordinação ao estrangeiro na execução do seu Plano de Metas planificador, que promulgava o avanço de “cinquenta anos em cinco”. Também o curto governo de Jânio Quadros, entre janeiro e agosto de 1961, segue pela ótica populista, adaptando as estratégias desenvolvimentistas do Estado ao capital internacional. Próprio a este período populista era o desvio da atenção teórica e da ação política do problema da luta de classes, acobertando o crescente sofrimento das classes subalternas.

Mas é através do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) que o nacionalismo evolui ao grau de ideologia nacional. Essa é a segunda instância integrante do primeiro marco reformista da Gestão Pública brasileira e que coabita com o DASP. Instituído por João Café Filho, sucessor de Vargas, o ISEB já encontrava lastro anterior, sendo órgão sucessor do IBESP (Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política).

Toledo (1997) classifica o ISEB como uma instância nascida da interferência da intelectualidade carioca, o “Grupo de Itatiaia”, visando assessorar a hegemonia do Estado capitalista nacional. Firma-se como órgão burocrático do Estado em 1955, vinculado ao Ministério da Educação e Cultura, ramificando-se em dois conselhos e na diretoria executiva. Tornou-se uma “fábrica de ideologias”, denominação que Toledo (1997) confere ao seu conjunto doutrinário, que serviu ao nacional-desenvolvimentismo. Kubitschek o considerou inicialmente, mas acabou se opondo ao nacionalismo isebiano ao internacionalizar a economia em seu governo.

Mesmo aparentando uma unidade, o ISEB integrou amplas polêmicas em suas fases, sendo necessário compreender sua atuação como de dimensão interdisciplinar, dada a multiplicidade teórica e política de seus integrantes (Vale, 2006). Iniciou preservando um perfil de centro-esquerda (condenando o imperialismo norte-americano), até cumprir a função de munir uma parte da burguesia brasileira que se tornaria internacional para, por fim, ser demovido de sua influência pela ditadura em 1964 (Toledo, 1997). Em seus nove anos de existência, ao modo de cada um de seus integrantes, funcionou tanto para construir a ideologia da identidade nacional, como para propagação de ideias antissistema. Não apenas os elementos da crítica antissistema (Adorno, 2009) estão presentes, mas o questionamento sobre o progresso (Adorno, 1992).

No entanto, a dialética adorniana conflita com a segunda fase isebiana, visto que ela se encerra em pressupostos de equilíbrio e ordem para o desenvolvimento. Como demarca Garcia (1979, p. 28) ao referir o comportamento da Gestão Pública brasileira, o impulso à crescente heterogeneidade estrutural desconsidera o exame das “questões relativas ao conflito e ao poder enquanto coação ou coerção”, considerando-as “unicamente como autoridade burocrática”. Era o que o ISEB proporcionava à fase desenvolvimentista do país, numa inclinação que podemos qualificar como alienante do quadro conjuntural da desigualdade brasileira.

Do lado em que serviu ao Estado brasileiro como uma “instância da doutrina da adaptação” (Adorno, 2009, p. 129), o ISEB corresponde duplamente à nossa análise constelatória. De uma parte, se firmou como órgão da burocracia do poder; por outra, antecipa, neste conjunto analítico, a importância de construções ideológicas motivadas pelo Estado, que se retroalimentam.

Visto não mais servir à constituição da ideologia da identidade, o ISEB passa, então, para o lado do não idêntico, numa demonstração da força impressa pela burocracia do poder. No entanto, não se pode dizer que a sua ideologia reverenciou a construção da “hegemonia da classe dirigente no país. Para que isso pudesse ocorrer, seria necessário que os trabalhadores internalizassem a ideologia produzida; a própria história se encarregou de eliminar, no entanto, essa possibilidade” (Ortiz, 2009, p. 47). Para Motta (1979, p. 114), “o desaparecimento do ISEB relaciona-se com o colapso do populismo, que criou um vácuo político, que só veio a ser preenchido pelo surgimento, em 1964, do Estado militar capitalista”.

Cabe observar o papel exercido por uma terceira instância de adaptação às demandas do sistema capitalista, especificamente as econômicas: a CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe). Em meio ao declínio do DASP e antes da institucionalização do ISEB, surge a CEPAL, em 1948. Como a própria nomenclatura define, seu objetivo era auxiliar teórica e metodologicamente no desenvolvimento econômico da América Latina (Haffner, 2002).

Órgão mais amplo e criado pelas Nações Unidas depois da Segunda Guerra, a CEPAL influenciou a conduta dos órgãos internos nacionais. Seu foco principal residia no planejamento de adequação do Brasil, qualificado como de economia periférica frente aos padrões europeus e americanos de desenvolvimento. A relação da CEPAL com os governos Vargas e Kubitschek tornou-se inegável, motivando a criação de indústrias de base e do aparato de escoamento da produção nacional, porém negligenciando as especificidades brasileiras.

Diante de uma condução política e administrativa basicamente técnica, Haffner (2002) destaca que se acreditava estar criando as melhores condições para o progresso social e a autonomia nacional. Mas, a cada crise, o que acontecia era o inverso e o país era cada vez mais colocado em interdependência externa, distanciando-se paulatinamente da ideia de emancipação e autonomia próprias. A influência cepalina gerou este resultado, especialmente quanto ao Plano de Metas de Kubitschek, que se utilizava imensamente do capital e da assistência internacional. DASP e CEPAL eram órgãos que reuniam “autoridades do governo, empresários, militares nacionalistas e técnicos civis”, com o interesse pelo “bem comum do país, assim como o resguardo da economia nacional e das suas estruturas” (Haffner, 2002, p. 28). Em seu conjunto, as três instâncias – DASP, ISEB e CEPAL – podem ser apontadas como a alma do Estado de tipo prussiano no Brasil, edificador das grandes políticas pelo alto, contribuindo, respectivamente, nas esferas administrativa, política e cultural, e econômica, para que na gestão de diferentes governos houvesse adaptação das camadas populacionais ao processo de modernização vertical centralizado.

O segundo marco burocrático-reformista pertence à Gestão Pública do Estado pós-golpe de 1964, em que o aniquilamento do não idêntico experimenta proporções de um modo jamais visto. Em meio a diversas medidas antipopulares[7], a segunda grande reforma administrativa do Estado no Brasil do século XX é instituída pelo Decreto-Lei n. 200, de 1967. Como princípios balizadores da Gestão Pública brasileira estavam o planejamento, a coordenação, a descentralização, a delegação de competências e o controle. Esses desígnios mantêm relação com os órgãos propulsores elencados, que continuam exercendo certa influência. Instaurou-se uma demarcação mais precisa dos princípios burocráticos, o que, consequentemente, é responsável por uma maior cisão entre Estado e sociedade civil (Costa, 2008).

Unido aos “avanços” burocráticos previstos pelo regime militar, notadamente malsucedidos[8], andou o autoritarismo de sucessivos governos, protetores dos interesses capitalistas internacionais. “A ditadura surgiu, assim, como a melhor solução possível para o macroproblema da reprodução do sistema de classes em sua globalidade. Dado esse passo, estava resolvido em nome de quem o poder estatal seria exercido” (Martins, 1977, p. 215). Por vinte e um anos desenvolveu-se uma das evidências mais contundentes da recusa e cerceamento do não idêntico no Brasil contemporâneo. Foi uma espécie de explosão hipertrófica dos processos de danificação da Gestão Pública, cuja reparação o Estado jamais priorizou por um enfoque antissistema ou do não idêntico.

A reforma imputada visava aos interesses econômicos, especialmente os do capital estrangeiro, tanto que Delfim Netto assume o Ministério da Fazenda em 1967 e nele permanece por sete anos na execução do chamado “milagre econômico” (1968-1973). Fundamentado na mais agressiva ortodoxia monetária, o economista objetivava o crescimento de um ‘bolo’ (Marineli, 2014) cujas fatias nunca foram divididas entre a maioria despossuída da população. O anunciado ‘milagre’ foi concretizado à revelia das reais necessidades das massas empregadas pelos capitalistas.

De modo geral, as unidades administrativas ou órgãos propulsores desse segundo marco reformista eram mais difusos que aqueles do longo período anterior, oscilando em prol do atendimento das demandas econômicas totalizantes dos governos militares. Assim, desde o Decreto n. 200/67 até a abertura democrática, o país percorreu várias etapas de ajustes econômicos, cujas dinâmicas se constituíram na expressão de uma Gestão Pública peculiarmente danificada pelo enfoque economicista. Na realidade, esta é apenas uma expressão finalizadora do que aconteceu “ao longo da história da República, desde 1888-89 até o presente, e o poder estatal confunde-se cada vez mais com a economia política do capital, da acumulação capitalista” (Ianni, 2004, p. 232). Inerente à sociedade industrial, a única forma de conhecimento que se torna relevante é o técnico que, segundo Adorno (2009), é abstraído das relações sociais de produção como se fosse o único que governa a forma social, embora seja essa uma manobra teórica que encontra justificativa na dominação burocrática.

A marca patente desta faceta da danificação é a desconsideração da perspectiva social em favor do desenvolvimento econômico, pois o foco constituiu em mediar equilíbrio estatal e prospecção das grandes empresas. É daí que surge a ideologia midiática de sempre perguntar se a economia vai bem, mas sem nunca querer saber se o povo vai bem. Essa dinâmica revelou-se como o mais saliente recorte de uma totalidade autoritária disfuncional, reflexo do capitalismo excêntrico que se instalou no Brasil. A partir disso é que evoluímos para uma imersão maior da lógica empresarial no Estado, através do reformismo gerencialista.

Assim, a Gestão Pública brasileira alcança o terceiro marco burocrático-reformista pelo Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado no Brasil, implantado em 1995. Este consistiu, basicamente, na adequação do discurso da gestão estatal aos padrões de governos internacionais, especialmente dos EUA e do Reino Unido. O país sofre um processo de conformação aos ditames neoliberais, minorizadores do papel do Estado e maximizadores do capital privado. A Nova Gestão Pública ou gerencialismo que, segundo Paula (2005), tem como bases teóricas o pensamento neoliberal e a teoria da escolha pública, formataram um conjunto de doutrinas administrativas desde a década de 1970. O Chile foi o primeiro país da América Latina submetido a estes ditames, que atingem o Brasil duas décadas depois.

O gerencialismo compunha-se de um arcabouço teórico que integrava uma crítica à burocracia, a difusão da cultura do management e do empreendedorismo na Gestão Pública (Paula, 2005). Esta tendência desenvolveu-se como um ‘tsunami’ ao ser veiculada por obras como Reinventando o governo, de Osborne e Gaebler, voltadas à nova classe dirigente do Estado – os agentes financeiros e rentistas. Essa classe subverteu a burocracia pública às regras do mercado, contra o Estado.

Com o auxílio da crítica à razão instrumental de Adorno (2009), precisamos enxergar com reticência os pressupostos da eficiência e da produtividade, eixos centrais dessa cartilha neoliberal. Não são princípios novos e tomá-los assim constitui uma ignorância histórica, pois são tão antigos quanto as primeiras teorias que servem às grandes empresas emergentes com a revolução industrial. São apenas repaginados e adquirem a “roupagem da moda”, sendo ideologicamente reapresentados pela hegemonia anglo-americana, sem que possam, muitas vezes, ser vistos como enxertos de fora para dentro na lógica da ação do Estado brasileiro.

No Brasil, esse sistema de gestão levou ao que Paula (2005) refere como novíssima dependência, não se abandonando o desenvolvimento dependente e associado da década de 1960, adaptando o país às novas regras do capitalismo internacional. Para a autora, a reforma gerencial foi o desdobramento da visão do então presidente Fernando Henrique Cardoso, que conciliou seu pragmatismo à ideia de desenvolvimento dependente e associado, cujos principais pressupostos centravam-se na abertura dos mercados e atração de investimentos externos. Isso naturalizou ainda mais a histórica exploração sobre o país, especialmente pelo ajuste ao Consenso de Washington e às tendências da Terceira Via. O resultado foi uma onda de privatizações e terceirizações, bem como uma forte exaltação das organizações não governamentais como assessórias – substitutivas ou compensatórias – ao papel do Estado.

Operacionalmente, a reforma do aparelho do Estado de 1995 objetivou deslocar o papel da burocracia no Brasil. A ideia – meramente ideológica, porque sem lastro material ­– era superá-la, mas isto jamais aconteceu. Concentrou-se o processo decisório em gestores pragmáticos, apenas comprometidos com o objetivo da eficiência na gestão do Estado, numa continuidade mais rebuscada da visão economicista. Ocorreu que, ao mesmo tempo em que se perseguiu o intuito de direcionar a configuração do poder para outras frentes, em especial a econômica, reeditou-se o jogo, aparentemente neutro, da suposta separação entre política e administração.

A instituição do MARE (Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado) demarca a aplicação desta reforma, em que o modo de gestão presente redundou numa maior incidência do capital especulativo sobre o país. Embora tenha carregado o elemento social, este funcionou como uma de suas mais atraentes justificativas. Elegeram-se, através do MARE, novos instrumentos de intervenção do Estado calcados em cinco diretrizes (institucionalização, racionalização pela avaliação estrutural, flexibilização com a criação de agências executivas, publicização pela viabilização das organizações sociais, e desestatização), que refletiam mudanças organizacionais, instituídas através da promulgação da Emenda Constitucional n. 19, em junho de 1998 (Costa, 2008).

Doravante, o que tem se consolidado como Estado gerencial é o que adota pressupostos semelhantes aos de uma burocracia flexível, onde os limites de ação se dão via contratos e mecanismos de controle sutis. Paula (2005) critica estes como resultados de um Estado despolitizado e pouco democrático, incapaz de auxiliar na superação de conflitos sociais. Para a autora, especificamente decorrentes da peculiaridade nacional, o modelo gerencialista apresentou como limites importantes: (i) centralização do processo decisório e desestímulo à participação social; (ii) ênfase nas dimensões estruturais da gestão, em detrimento da social e da política; e (iii) propagação de um modelo de reforma e de Gestão Pública que jamais fora implantado no país.

Embora promulgada, Paula (2005) critica que a emenda que instituiu esta terceira grande reforma jamais executou uma avaliação estrutural. Do projeto de agências executivas surgiu uma única – o Inmetro – e da proposta de publicização surgiram apenas cinco organizações sociais. Percebe-se uma frustração até mesmo no intuito de atender adequadamente a reprodução capitalista, embora não possamos ignorar que a maior realização do MARE tenha sido a privatização de empresas estatais, reforçando a ideia neoliberal do Estado mínimo, acentuada desde o governo Collor (Costa, 2008). No tocante à alteração das causas da desigualdade brasileira, o MARE se instituiu como mais um movimento de negação do não idêntico ao negligenciar o desenvolvimento social no país. Mesmo havendo uma leitura sobre a necessidade de uma Gestão Pública societal (Paula, 2005) para corrigir as mazelas do gerencialismo, a realidade nos mostra sua impossibilidade. No que concebemos como uma Gestão Pública danificada, tais bases não contemplam alterações fundamentais nas relações sociais, porque são sustentadas pela base capitalista.

No conjunto das reformas elencadas houve um assujeitamento passivo da Gestão Pública às demandas do capital, negligenciando a crítica imanente por efetivar uma desconexão dos interesses sociais, como no formalismo manipulado conforme os interesses em jogo. As instituições foram postas de fora da realidade, lógica que se opõe ao pensamento adorniano quando ressaltamos a crítica imanente como crítica do dogmatismo por este impedir o questionamento da própria prática social, se restringindo à contemplação desinteressada. Ignora-se o desejo de superação do sofrimento do mundo, permanecendo-se apenas na esfera da adaptação possível ao sistema vigente, consolidando uma Gestão Pública de concessões e complacências.

Assim, a única experiência estética possível na burocracia é a de um nivelamento cooperativo em prol do sucesso de sua configuração, mas que, ao cabo, serve a poucos. O conceito permanece encantado, elevando-se a uma pretensão idealista que visa à identidade, o traço triunfante da dominação ideológica. São admitidas apenas saídas paliativas, reforços à continuidade do ciclo reformista, agradáveis aos ouvidos do poder capitalista e, inclusive, patrocinadas por seus atores, que com sua exaltação ainda obtêm um significativo reconhecimento simbólico.

Embora algumas contradições da realidade capitalista tenham sido minimizadas com o aceno a alguns programas sociais, dialeticamente a maioria da população permaneceu sob o jugo do capital financeiro externo, sendo isto maquinado e maquiado por estruturas de poder muito eficientes. Ao tratarmos as reformas da Gestão Pública brasileira como ‘malabarismos reformistas’ isso é melhor evidenciado.

 

1.2. Poder da burocracia

Tragtenberg (1989) entendia as reformas como subterfúgios que dizem tudo mudar para manter as coisas como estão. Este parece o princípio regente das reformas atuais que, quando não há piora do quadro de desigualdades sociais, permanece a sensação de que não virá nada de diferente. O aperfeiçoamento da burocracia apenas encerrou a luta de classes em relações de autoridade formalmente preestabelecidas. Ao passo que as modificações da era burocrática brasileira não ensejaram nada mais do que malabarismos reformistas, elas favoreceram o desenvolvimento da estrutura do capital, sempre preservando o poder da burocracia e, por extensão, o poder das classes dominantes.

O interesse político é anunciado de modo neutro pelo trâmite burocrático, e vai aos poucos afastando expectativas de transformações profundas. Para Adorno (2009, p. 60), o caráter reformista merece ser entendido como o absoluto que se transforma “em algo histórico-natural a partir do qual pôde ser alcançada de maneira relativamente rápida e tosca a norma da auto-adaptação”. Esta auto-adaptação (sich anpassen) possui uma conotação diretamente política, sendo um termo utilizado pelo nazismo para expressar a adequação necessária de pessoas e instituições ao novo regime, não permitindo uma crítica imanente nos termos de Adorno. O particular é extinto no momento em que as reformas se restringem a uma ‘clínica geral’ amorfa, fazendo-nos compreender as razões de sua incompletude (pré)programada.

Nas práticas reformistas, a tônica do Estado brasileiro se tornou instrumental não por acaso, mas como integrante do jogo do poder mundial, que encontra ressonância interna ao associar-se a interesses singulares. A burocracia se automatiza identificando-se às forças econômicas e “para sua administração não só não precisa mais dos reis como também dos burgueses: agora ela só precisa de todos. Eles aprendem com o poder das coisas a, afinal, dispensar o poder” (Adorno & Horkheimer, 1997, p. 52).

Assessora do Estado burguês, a Gestão Pública atua na conservação do processo de extorsão do sobretrabalho, mantido pelo burocratismo do Estado, cujas tarefas são hierarquizadas segundo critérios de competência. O burocratismo, uma espécie de despotismo de Estado, seria distinto da burocracia por remeter à categoria social dos funcionários que se firmam como representantes do povo-nação, também amparando ideologicamente a reprodução das relações de produção capitalistas (Saes, 1985). O núcleo do pensamento ou da lógica burocrática é essencialmente voltado à técnica instrumental. Nesse “abandono do pensamento (...) o esclarecimento abdicou de sua própria realização. Ao disciplinar tudo o que é único e individual, ele permitiu que o todo não compreendido se voltasse, enquanto dominação das coisas, contra o ser e a consciência dos homens” (Adorno & Horkheimer, 1997, p. 51).

A pretensa neutralidade axiológica da burocracia acentuou o seu poder no Brasil. Associado à barbárie social, o poder da burocracia cresceu e se fortificou lastreado pelas ditaduras de Estado a partir de 1930. Quando o reformismo daspiano instituiu o primeiro modelo de Estado burocrático no Brasil, autoritarismo e centralização marcaram a lida do Estado com o social. Entre 1936 e 1945 a reforma do Estado se deu com base nas teorias administrativas ocidentais, derivando disso, segundo Wahrlich (1974), a motivação para estudar cientificamente a Administração no país. Os resultados do emprego dos princípios daqueles estudiosos são negativos, indo do controle e da centralização à coerção típica do regime de Vargas.

Daí que a modernização de Vargas se impôs via naturalização do jogo meritocrático, cristalizando o mérito e isolando-o dos condicionamentos sociais. Observando esse quadro, Paiva (2009) destaca que houve imersão numa realidade na qual o sujeito não mais dispõe dos meios de produção, isto ficando restrito às burocracias, tanto públicas como privadas. Da mesma forma, pelos desígnios tayloristas, o procedimento burocrático rejeitou a discussão política e ideológica para operar a gestão pela justificativa de que critérios racionais de precisão e eficiência não seriam úteis. A opção pela saída técnica construía um imaginário apolítico, desvirtuando a política e, ao mesmo tempo, exaltando a neutralidade da técnica.

Alcançar um Estado centralizador, portanto, antes de uma consequência desavisada, era algo desejado para manter interesses individuais. Assim, decisões obscuras imediatistas firmaram modos de ação na Gestão Pública que se perpetuaram indiscriminadamente, resultando em fragmentações institucionais nas quais os operadores da burocracia estatal passaram a conhecer muito a respeito de pouco (Tragtenberg, 2006).

A elite conservadora conseguiu que o Estado alcançasse uma abertura que elevou, pelo esforço modernizador, “as bases materiais do capitalismo e do mercado interno brasileiro” (Souza, 2006, p. 148). À elaboração do consenso foi crucial a repressão das classes subalternas, em que a dimensão técnica do Estado se associou estrategicamente à manutenção da burocracia corporativa, capturando inclusive os sindicatos. Sobre essa condução coercitiva, Adorno (2009, p. 26) nos alerta quanto ao fabrico da sensação de liberdade, dada em última instância pelo consumo:

 

à sombra da incompletude de sua emancipação, a consciência burguesa precisa temer vir a ser anulada por uma consciência mais avançada; ela pressente que, por não ser toda a liberdade, só reproduz a imagem deformada dessa última. Por isso, ela estende teoricamente a sua autonomia ao sistema que se assemelha ao mesmo tempo aos seus mecanismos de coerção.

Pelos governos militares a força da burocracia foi sentida de tal modo que o último dos seus presidentes, João Batista de Figueiredo, criou, pelo Decreto n. 83.740/1979, o Programa Nacional de Desburocratização, dirigido pela própria presidência com o auxílio de um ministério extraordinário, o da Desburocratização, que existiu de 1979 a 1986. Um de seus ex-ministros, João Geraldo Piquet Carneiro, observou, num sintético texto intitulado Histórico da desburocratização, que a preocupação com a centralização administrativa é antiga, presente nos viscondes do Uruguai (1807-1866) e de Mauá (1813-1889), e que já a Reforma Administrativa de 1967 visava descentralizar ações do executivo, o que foi totalmente comprometido pelo “recrudescimento do regime militar, em 1969” (Carneiro, n.d., p. 3).

Evidente que do lado das mediações da burocracia, incluindo seu aparato jurídico, houve limitações às pretensões imediatistas ditatoriais e a preceitos liberais no exercício da economia. Isso sugere tanto o cuidado de não termos uma visão contrária acrítica da burocracia, como também não uma visão favorável acrítica. Não cabe criticar a burocracia para liquidar as esferas do Estado em favor do privatismo liberal, nem defendê-la para ser contra isso, mas criticá-la para uma abertura democrática do Estado em favor da participação da sociedade civil, ainda que também neste ponto haja o risco da acriticidade de se pensar que esta é a solução definitiva a ser almejada, liberando o próprio Estado de uma crítica aos seus fundamentos históricos contraditórios.

Apesar de praticamente todas as propostas de reformas antiburocráticas incluírem a justificativa de maior eficiência no acesso da população aos serviços públicos, o fato é que pouca ou nenhuma questão social objetiva vigiu verdadeiramente por trás de tais tentativas e reformas. No mais, a burocracia estatal foi atacada para a remoção de travas do Estado em favor de teses liberais e privatistas, o que está presente mesmo no Decreto mencionado, apesar da construção de grande parte do parque nacional.

Após intenso desmantelamento da máquina administrativa, as privatizações na reforma dos anos 1990 foram justificadas em razão da ineficiência oriunda do peso do Estado. A crise do Estado analisada pelo ministro Bresser-Pereira, do MARE (Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado), resumida no PDRAE (Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado) desemboca na conclusão de que o Estado deveria deixar “de ser o responsável direto pelo desenvolvimento econômico e social, para se tornar seu promotor e regulador” (Costa, 2008, p. 863).

Apesar da defesa da substituição do ethos burocrático pelo gerencial, com o PDRAE apenas a configuração geral da burocracia foi alterada, ficando distante qualquer rompimento efetivo. Tanto não são contrapostos os princípios da burocracia, que eles se tornam mais voltados a um Estado otimizado, introduzindo o funcionalismo público mais a fundo na lógica do capitalismo. Enquanto ministro do MARE, Bresser-Pereira corroborava com uma burocracia pública que controlasse o processo decisório e assegurasse a eficiência administrativa do Estado, resgatando o ideal tecnocrático dos modelos reformistas anteriores (Paula, 2005).

Correlato ao grau limitado de confiança em servidores e políticos (Bresser-Pereira, 2003, p. 28), houve um apelo ao empreendedorismo da década de 1970, que entrou no Estado brasileiro para sustentar sua função lucrativa. Exemplo disso é o emprego da expressão cidadão-cliente, que naturalizou o cidadão como mero consumidor dos serviços oferecidos pelo Estado. Assim, a reforma gerencial não desmantelou o poder da burocracia, mas buscou lhe conferir uma feição “mais humana”, contraditória e profundamente mais nefasta, porque tal mercadorização dissimulou mais ainda as desigualdades.

Malgrado a defesa de que a qualificação técnica ocorre em favor do interesse público, a burocracia estatal acabou se firmando como a mais perfeita mímese do capitalismo empresarial. Os burocratas frequentemente colocam-se como defensores do interesse público, autodenominando sua atuação como apolítica e apartidária. Para Gouvêa (1994), esta é uma autonomia inconsistente com a realidade de seu espaço de atuação, condicionada por limites estruturais em meio a interesses diversos. Os próprios burocratas acabam decidindo o que é o interesse público, cujos resultados são imposições de um poder descontrolado.

Nesta impossibilidade da técnica resolver os dilemas da Gestão Pública – mas que comercialmente se colocou como única forma para governar – ampliam-se os mais diferentes níveis de controle no Estado. Como formalizações da burocracia especializada moderna, o embasamento do controle não dista nenhum pouco das teorias da empresa capitalista ou da administração privada. Acompanhando a interpretação de Faria (2010), percebemos que a burocracia age como se as relações de poder não dependessem das relações sociais. Pela Gestão Pública corrente, é da mesma forma que o Estado também passa a advogar um papel neutro frente aos problemas sociais, tratando-os como técnicos. Neste sentido, mesmo as mais avançadas tecnologias do reformismo não estão libertas da histórica incompetência da burocracia[9].

Junto do espírito capitalista, a Gestão Pública continua operada pela tecnoburocracia, que se basta apenas mantendo o seu lugar e o das classes dominantes. Não faz parte de sua natureza uma ousadia para além daquela demonstrada em sua trajetória histórica, cujo avultamento de papéis é apenas a ponta do ‘iceberg’. Por isso, jamais os burocratas almejariam capturar o lugar das classes dominantes, oxalá motivar mudanças estruturais profundas na sociedade. Contentam-se e almejam apenas seguir de mãos dadas ao poder dominante, se autopromovendo num permanente esforço de distanciamento social. São exemplos as famílias de elites locais historicamente alojadas nas esferas do Estado, uma clara manifestação do nepotismo no Brasil. Assim, dificilmente se alcança uma distinção qualitativa entre reformismo e reforma transformadora ou revolucionária, conforme assinala Coutinho (1984, pp. 194-195) ao colocar em xeque a conservação do sistema capitalista em diferentes matizes:

 

é certo que uma correta “estratégia de reformas” não pode deixar de colocar claramente o objetivo final socialista, a conquista do poder de Estado pelas massas trabalhadoras; essa colocação do objetivo final (...) é o que distingue uma política revolucionária de reformas de uma política simplesmente reformista, que sirva apenas – em última instância – para “contrabalançar” ou “racionalizar” o poder da burguesia monopolista.

O destino mais provável que do reformismo emana é a constante auto-adaptação do próprio indivíduo, cidadão apenas quando ajustado aos ditames burocráticos, numa conformação ideal ao sistema. Como disse Adorno (2009), toda tentativa de síntese é passível de equívocos.

 

2. Autocentralidade Inautêntica Ampliada

Uma vez que a gestão do Estado se tornou a gestão do capital, chegamos à concepção da Gestão Pública brasileira como portadora de uma autocentralidade inautêntica ampliada. Na medida em que a burocracia em seu ímpeto reformista se aperfeiçoou como instância de controle racional assegurador da gestão financeira estatal, foi objetificada pelo capital, coadunando com o mundo administrado, que refuga a capacidade de experiência dos indivíduos, pois carrega uma performance modeladora, em que:

 

cabe àqueles que, em sua formação espiritual, tiveram a felicidade imerecida de não se adaptar completamente às normas vigentes (...) expor com um esforço moral, por assim dizer por procuração, aquilo que a maioria daqueles em favor dos quais eles o dizem não consegue ver ou se proíbe de ver por respeito à realidade (Adorno, 2009, p. 43).

A relação proposta para enfrentar o mundo burocrático é dialética negativa e seu grau de suportabilidade é algo que navega de um extremo a outro. Tornou-se impossível modificar o sistema a partir dele mesmo. Embora toda tentativa seja válida, torna-se hercúlea. As reformas burocráticas se fizeram necessárias como demandas internas à própria burocracia, mas, por outro lado, a autonomia da burocracia está sujeita aos interesses do capital, não podendo exacerbar seus limites, permanecendo-lhe modelarmente circunscrito.

Destarte, ao passo que promulga um Estado regente dos destinos da nação e defensor aparente dos interesses públicos, a burocracia sempre revela graves limitações de uma franca desorientação com o social. Apenas se considerados os fatos dos governos ditatoriais, sobram exemplos do processo da industrialização a partir da ideia de “segurança e desenvolvimento”. Pensando nestes reflexos da ‘burocracia militarizada’ dos anos 1960, podemos encaixar as duas categorias finais da nossa constelação, acentuando nossa crítica ao sistema de Estado prussiano violentamente edificado no Brasil. Refletimos sobre o democratismo e a estadania como características dessa autocentralidade inautêntica ampliada, cuja natureza reforça o caráter danificado da Gestão Pública no Brasil.

 

2.1. Democratismo e estadania

Numa projeção das sombras do naturalmente disposto na luz, democratismo e estadania só podem ser vistos como ‘anticategorias do convencional’, assim demarcadas para uma compreensão reversa da história. Pela crítica desnaturalizadora, acreditamos ser possível entrever como se desencadeiam os processos de naturalização. A ideia de conquista da democracia e da cidadania no Brasil permanece inclusa nos discursos oficiais, mas que traduzem arranjos deterministas envoltos em uma visão dual da realidade brasileira. Tais discursos, observados pela dialética negativa, revelam a ideologia da adaptação, e lançam perigosamente suas premissas aos historicamente desavisados, atingindo até mesmo a comunidade acadêmica.

O lema apendoado da ordem e do progresso é acriticamente introjetado e destoa historicamente da realidade nacional, o que se torna facilmente perceptível apenas por uma atenção superficial à história e à própria realidade concreta atual. Nesse ínterim, democracia e cidadania continuam sendo conceitos que cumprem um papel associado a certas perspectivas de pensamento teórico na Gestão Pública. Alimentadas pelo viés kantiano, embasam-se numa moral orientadora da práxis que, por evitar o caminho dramático da contradição imanente, não ultrapassa uma preservação rearranjada da lógica do capital.

Entendido por Martins (1994, p. 171) como “o avesso da democracia”, o democratismo surge quando são disfarçados interesses particulares e colocados de modo oportunista como interesses públicos. Em seu desvirtuamento da democracia, o democratismo omite fatos, como esquemas informais de poder que negociam com outras frações burocráticas do Estado. Também dissimula a relação entre cargos dirigentes e grupos de interesses não legitimados popularmente para o comando do Estado. De outra parte, cria-se uma ilusão democrática na sociedade informacional, muito embora já se tenham recursos tecnológicos que propagaram a transparência e a fiscalização das ações do Estado. Mas, isto não se converte em democracia efetiva, o que nos remete à reprodução ampliada do capital via modelos tecnológicos – o “mito operacionalizado” –, reforçadores do poder tecnocrático, que “surge como poder da natureza. Aí a razão historicizada – burguesa – define seus princípios como leis a-históricas, naturais. O conceito de informação brota indevidamente ampliado, gerando confusão entre informação eletrônica e a dos sistemas sociais” (Tragtenberg, 2006, pp. 268-269).

Realizar apropriações tecnológicas para construção da cidadania e da democracia adquire sentido de mímesis expressiva falsa (Adorno, 2009). O fato de existirem tecnologias sociais não assegura emancipação e acessos equânimes, pois seus fins podem ser apenas a reprodução capitalista. Existem, portanto, monumentais limites quanto à participação popular na gestão do Estado e, por conseguinte, quanto à cidadania, sobre a qual é criada uma ilusão de inclusão na sociedade informatizada, o que pode ser identificado como um efeito em cascata oriundo da lógica participacionista. Veja-se o período da redemocratização, com a democracia participativa fortemente motivada, mas que Chasin (2000, p. 262) observa como “revolução dos procedimentos”, que tornam democracia e participação idênticas. As formas prevaleceram sobre conteúdos, “a participação se torna participacionismo e a democracia o universo de sua realização. Em outros termos, a democracia se revela como participacionismo negociador, o plano único ou supremo da política, a forma de encarnação da liberdade”.

Esse aprendizado é assimilado pela Gestão Pública para obter consenso populacional. Absorvido da empresa privada corroborou “um participacionismo [que] tende a manter a velha forma de relação entre capitães de indústria e operários” (Tragtenberg, 2006, p. 103). Ao ‘cidadão’ resta uma sensação de inclusão sob o sistema democrático representativo, porque determinado pelo poder econômico, que descaracteriza necessidades sociais. Inobstante, essa democracia não substantiva representa uma alternativa previamente estipulada, calcada em um suposto pensar livre, mas que em si já representa um fragmento de heteronomia, contradizendo qualquer pensamento que a isso possa resistir (Adorno, 2009, p. 35).

Para Adorno (1992, p. 115), “a liberdade seria não a de escolher entre preto e branco, mas a de escapar à prescrição de semelhante escolha”. Limitada, a democracia adquire um tom plebiscitário, no qual as opções são fechadas entre alternativas prévias, às quais todo não idêntico deve convergir. Assim, historicamente, a estrutura político-social que serve à Gestão Pública, reforçada pela democracia representativa, apenas encobre interesses corporativos. O mesmo “capitalismo democrático”, apontado no tocante às empresas por Motta e Bresser-Pereira (2004) passa a ser generalizado ao complexo social, sendo o Estado enquadrado em moldes idênticos aos das organizações.

Nesta aparência frutificaram ações participacionistas, tais como os Orçamentos Participativos (OPs), anunciadores de um caminho de inovação democrática. Ilustrados pela vertente da administração pública societal, prometeram reinvenção político-institucional e cura de muitas mazelas da gestão pública, assim como outros modelos alternativos de gestão, como economia solidária e gestão social, que também não rompem com o sistema, por serem incapazes de superar as limitações já exemplificadas. Até podem abarcar a noção de “excedente utópico” de Bloch, mas reduzem a utopia a reformas que se colocam de antemão flagrantemente aquém de qualquer emancipação. Tal limitação, naturalizada como ‘único alcance possível’, não se coloca a altura da gravidade da vida danificada, patente sob a espessa desigualdade social da era do capital.

As panaceias, quando muito, apresentaram soluções mediadas pelo capital. Isso revela a importância de Adorno ter pensado a subversão como exigência necessária para promover um pensamento livre de qualquer sistema. Torna-se correto dizer que vivemos sob o governo de uma estadania, avesso a uma cidadania plena, social, que contemple igualitariamente as pessoas em suas demandas. Pensar em estadania nos permite submeter a cidadania a uma avaliação histórica das suas contradições, o que revela uma cidadania aprendida a ‘porrete’. Como avalia (Carvalho, 1998), no processo de ‘reconhecimento’ da cidadania brasileira há uma histórica política do “pau-brasil”. Desde a escravidão (com o chicote), perpassando pelo Brasil Colônia (com a cacetada) e pela República (com o sarrafo), até a ditadura (com o pau-de-arara e o choque elétrico), o Estado enquadra o espírito humano, sendo bom cidadão aquele que se encaixa na hierarquia.

Neste processo histórico de anulação da cidadania é que se consolidou a estadania como a melhor das hipóteses de relacionamento entre o indivíduo e o Estado: “estadania”, “em contraste com a cidadania” é a prevalência de uma “cultura orientada mais para o Estado do que para a representação” (Carvalho, 2009, p. 221). O Estado, como centro de poder, age como repressor e cobrador de impostos e, na melhor hipótese, distribui patrimonialistamente favores e empregos. Nesse contexto, a ação política é orientada para a negociação em linha direta com o governo, tal como a empreendida pelo operariado na Primeira República e na década de 1930, denotando uma adaptação geral ao quadro ditatorial (Carvalho, 2009).

Destarte, o cidadão teve sua autonomia e liberdade tolhidas pela verticalização política capitaneada por uma pequena elite, o que resulta na servidão ao burocratismo estatal. Como agravante desse contexto de cidadania renegada está a promoção da cultura do consumo, que encobre o desenvolvimento do sujeito e o torna objeto da sociedade capitalista. Para Carvalho (2009), a crueldade do consumismo transforma a cidadania em mera reivindicação ao direito de consumir, onde as perspectivas do avanço democrático se veem diminuídas pela adoção de uma alternativa cidadã liberalizante. Adorno (2010) considera que se relações sociais não cumprem promessas de liberdade, o sonho da formação é falsificado pela própria imposição do mundo organizado, sendo o espírito cidadão capturado pela mais franca semiformação. A mera sensação de cidadania a transforma num grande engano, porque distante de uma proposta verdadeiramente emancipatória.

Uma realidade em que ser cidadão é tão somente poder consumir caracteriza-se pelo governo do poder do capital, motivado pelo próprio Estado. O capital condiciona não apenas a maneira como o Estado é administrado, mas a consciência dos cidadãos, transformando-os em “consciências coisificadas” (Adorno, 1995), tendo seu comportamento manipulado pela lógica do consumo. O Estado exerce um papel de manutenção do sistema capitalista e de concentração do capital, servindo a política como um mero instrumento de manipulação grosseira. Encerram-se as possibilidades de elaborar um plano de finalidade própria, de primazia pelo social, pois o Estado passa a ser condenado a resolver as crises estruturais de acumulação capitalista.

Como agravante de uma impessoalidade excessivamente burocratizada, o cidadão-cliente é relegado a mero dado numérico, submetido à quantificação pelo próprio Estado. Este é apenas um dos fatores que caracteriza, pelo déficit de humanização, a subcidadania que, para Souza (2006), é um fenômeno de massas típico das sociedades periféricas modernas. Ela se origina, dentre outros fatores, de uma dinâmica sociocultural subordinada, pela qual se constrói historicamente uma hierarquia valorativa que segmenta como subcidadãos os desclassificados sociais, “subgentes”, integrantes de uma ralé estruturalmente formada a partir da própria ideia de periferia. Essa ralé é articulada junto a extratos que podem se tornar incluídos privilegiados, mas extremamente segmentados, tanto no tocante ao acesso ao mercado como ao Estado (Souza, 2006).

Assim, pensar efetivamente em cidadania parece tão distante quanto pensar em democracia, pois o Estado assimilou a era da indústria cultural ao manipular as mentes ‘estadãs’ e conferir sensação de inclusão no seu jogo ‘democratista’. Diante da dificuldade constante que carrega em seus acordos com o capital, não consegue desvencilhar-se de modelos apenas adaptativos. Como destaca Adorno (1992, p. 176), a indústria cultural “modela-se pela regressão mimética, pela manipulação de impulsos de imitação recalcados”.

Da tríade técnica-eficiência-produtividade derivam construções ilusório-adaptativas travestidas como alternativas, alimentando a Gestão Pública gerencialista por um ciclo manipulatório que garante a unidade e impermeabilidade do sistema (Adorno, 2002). O que não se percebe é que todo pensamento antissistema é alternativo, porém, nem todo pensamento alternativo é antissistema. Disso concluímos que muitas das infindáveis ‘teorias alternativas’ são meras opções de encaixe ao sistema do capital.

 

3. Considerações Finais

Na análise que realizamos outras inúmeras burocracias estatais poderiam ser referidas. Porém, limitamo-nos às três reformas que interferiram significativamente na gestão do Estado brasileiro desde a industrialização, visto o objetivo do nosso estudo ser apresentar uma análise crítica antissistema dos três principais marcos reformistas da constelação político-burocrática, definidores de alguns dos traços de danificação da Gestão Pública. Tais reformas foram sempre amparadas pela legalidade e alcançaram legitimação no seio social, mesmo sendo impostas à revelia das necessidades concretas, sendo a massa populacional historicamente tratada como instrumento dos interesses capitalistas, quando não coagida pela via prussiana do Estado. Corrobora-se um sistema de Estado que em sua técnica apenas reproduz os interesses dominantes, desvirtuando o interesse público, pois é óbvio que o Estado capitalista, antes de mentor de qualquer processo emancipatório, cumpre a função de atender ao capital. Comprovados inúmeros malabarismos reformistas, o poder de Estado também se mostra danificado, pois aceitou como formas de gestão as que atendem os interesses conservadores da formação capitalista.

Do modo como se apresentam as instituições do Estado e as estruturas político-burocráticas alimentadas pela Gestão Pública, permanecem possíveis apenas as amarrações técnicas da racionalidade instrumental, decorrendo disso um déficit de aceitação das contradições de classe integrantes da dinâmica da Gestão Pública. Isto reverbera à sua danificação, visto que seus ideólogos não pensam para além do que as práticas instrumentais delimitam. Qualquer novo modelo é consequência de uma amarração histórica e ideológica que nega o diferente e, por outro lado, se expressa na sua reprodução social. O Estado se mantém como forma de um conteúdo que está fora dele, de diferença social e classista. Por consequência, os processos de gestão, alguns que observamos claramente à luz das reformas burocráticas em seu burocratismo, correspondem à objetificação do Estado pelo capital, o qual atende desde a concepção de desenvolvimento como sinônimo apenas de crescimento econômico.

Ao expormos como a burocracia foi historicamente constituída no contexto brasileiro, servindo-se tanto de teorias da Administração, como da Gestão Pública, compreendemos a íntima relação delas para com os interesses dos tecnoburocratas do Estado, em oposição à luta democrática e por cidadania efetiva. A denúncia crítica deste emaranhado de negação social presente na incompletude das reformas, percebendo os meandros de um Estado portador de uma autocentralidade inautêntica ampliada, aponta para a necessidade de maior presença de análises via Teoria Crítica na Gestão Pública brasileira. Apenas subvertendo a tradição dos registros conformistas da história é que seremos capazes de interpretar mais claramente a conjuntura social e política atual, da tomada do poder do Estado pelo capitalismo financeiro, realidade que tem aniquilado muitos dos avanços sociais arduamente conquistados. Como lucidamente Adorno (2009, p. 24) pontuou: “lá onde o pensamento se projeta para além daquilo a que, resistindo, ele está ligado, acha-se a sua liberdade. Essa segue o ímpeto expressivo do sujeito. A necessidade de dar voz ao sofrimento é condição de toda verdade”.

 

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Agradecimentos: Ao CNPq, pela concessão de bolsa de estudos parcial para o curso de doutorado em Administração.



[1] Derivado do que Adorno (1992) chamou de vida danificada (beschädigten Leben), o que vivemos hoje como resultado de uma sociedade administrada, onde a consciência humana é moldada para se adaptar às exigências técnico-econômicas.

[2] São sete os elementos conceituais pressupostos na dialética negativa de Adorno: crítica da razão instrumental, mímesis/expressão, semiformação, crítica imanente, primazia do objeto, antissistema e não idêntico. Eles constituem um ‘meio termo’ entre a realidade da vida danificada e os elementos críticos para desbaratá-la.

[3] O termo constelação, também traduzido como configuração, significa na concepção benjaminiana “imagem de estrelas”, voltando-se ao sentido original das palavras (Otte & Volpe, 2000, p. 37).

[4] Fernandes (1976) localiza o capitalismo dependente num sistema semicolonial, fruto de uma acomodação interna híbrida, em que a economia se adequou a esse padrão diferenciado. Não há ainda uma ruptura com o passado, existindo uma competição capitalista, nascida da economia da exportação aliada à expansão mercantil interna e respectiva produção industrial.

[5] Os tenentes eram líderes militares oriundos da revolta de 1922, mas que continuaram influenciando até o primeiro governo Vargas, comprometendo-se com as reformas autoritárias (Costa, 2008).

[6] O populismo, como um dos elementos mais emblemáticos de manipulação das massas no Brasil, também é abordado por Francisco Weffort, em sua obra O populismo na política brasileira e por Octávio Ianni, em O colapso do populismo no Brasil.

[7] Deposição do presidente João Goulart e de alguns governadores, cassação de mandatos e suspensão de direitos políticos e de eleições, bem como a extinção de partidos e a maior centralização do poder do Estado são exemplos das medidas autoritárias adotadas (Costa, 2008, p. 850).

[8] O Decreto deixou como sequelas a reprodução das práticas anteriores, patrimonialistas e fisiológicas, por franquear o ingresso de servidores sem concurso público, bem como negligenciou a Administração direta ao priorizar a indireta, o que significou desatenção ao núcleo estratégico do Estado (Costa, 2008, p. 855).

[9] A burocracia é sempre incompetente, já que como círculo fechado vive para si própria (Motta, 1990).