ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE

Para além da reforma do estado - crises e limites da razão liberal

Beyond state reform - crises and limits of the liberal reason

Claudio Roberto Marques Gurgel

Doutorado em Educação /Universidade Federal Fluminense

Professor / Universidade Federal Fluminense

http://lattes.cnpq.br/9907815760130945

orcid.org/0000-0003-4840-9772

crmgurgel@hotmail.com

 

Resumo: A reforma do Estado no Brasil teve como ponto de partida o diagnóstico de que, nos anos 1970/1980, se instalou uma crise fiscal, proveniente do excesso de gastos públicos. Mas as crises não se explicam exclusivamente pela superestrutura. Por isso, o objetivo deste trabalho é analisar a reforma dos anos 1990 a partir de um olhar mais amplo, incluindo os papéis desempenhados pelo mercado, após o abalo da base técnica fordista, e pela sociedade, marcada pelo individualismo. Após vinte anos de experiência da reforma, configura-se a necessidade de retomar a perspectiva perdida, com mudanças que contemplem os frequentemente excluídos e que avancem para além da reforma do Estado em seu conceito liberal.

Palavras-Chave: Crises. Estado. Mercado. Sociedade

 

Abstract: The State reform started with a diagnostic, in the 1970s/1980s, according to which there was a fiscal crisis derived from public overspending. However, crises are not explained only by superstructure.  Therefore, this paper attempts to analyze the 1990s’ reform from a wider view, including the role of the market, after the Fordism crisis, and of the society, marked by individualism. After twenty years of reform, it is clear the necessity to resume the lost perspective, with changes that embrace socially excluded people, and advance for beyond the State reform in its liberal sense.

Key words: Crisis; State; Market; Society

 

A verdade está no todo

                                                                                                                                             W. Hegel

 

Texto completo em português: http://www.apgs.ufv.br

Full text in Portuguese: http://www.apgs.ufv.br

 


Introdução

Os anos 1970 foram tomados por uma crise econômica, que no Brasil se expressou nos anos 1980 de modo bastante evidente. Países centrais, Estados Unidos, Japão, Alemanha, França e Inglaterra, que tiveram, nos anos 1960, percentuais médios de crescimento econômico em torno de 4%, chegando a extremos como o Japão, em que a média alcançou 10,4%, todos tiveram suas taxas reduzidas. Alemanha e França caíram do patamar de 4% e 5% para percentuais em torno de 1%. O próprio Japão, símbolo de economia e de administração avançadas, recuaria dos já referidos 10,4%, para 3,6%, no período compreendido entre 1973-1979 (Harvey, 1994, p. 127).

Isto foi acompanhado por profundas quedas na taxa de lucro das empresas. Ademais, dois choques do petróleo se encarregaram de agravar a crise, ao ponto de levar à suposição de que eram os responsáveis por ela.

Crise e bonança no sistema mundo, para usar a expressão de Wallerstein, têm o condão de se estenderem por todo o globo, pelas mãos das multinacionais e outros caminhos que fizeram com que o planeta se tornasse cada vez mais interligado (Arrighi & Silver, 2001; Wallerstein, 1985). Os países latino-americanos também sofreram, talvez mais que os países centrais, em face destes últimos disporem de mecanismos de transferência da crise para a periferia econômica. Dos Santos, comentando a crise e o comportamento dos Estados Unidos diante dela, diz que

 

los capitales norteamericanos tiendem a volver hacia Estados Unidos, se retira por consiguiente el poco capital que acaso haya venido hacia América Latina en este período, particularmente hacia Brasil […]. Estados Unidos se ve economicamente con más fuerza para hacer imposiciones. (Dos Santos, 2011, p. 233).

 

Esta circunstância de crise foi acompanhada pelo debate sobre a validade das políticas econômicas até então em curso, advindas do segundo pós-guerra. Em certos casos, como os Estados Unidos, Suécia e alguns países da América Latina, dentre eles o Brasil, eram práticas datadas de antes da segunda guerra. A política em que o Estado tem papel destacado na economia, em seu ordenamento e racionalização, fomento e investimento, pode ser identificada no New Deal, de Roosevelt, como também no desenvolvimentismo de Vargas, por exemplo.

Tratava-se de um processo a que se atribuiu o título de keynesiano, em face do prestígio e em grande medida da proximidade entre os programas intervencionistas e a tese defendida por Keynes (1964), para quem o Estado dentro de certas condições deveria atuar no sentido de alcançar o pleno emprego, garantir um bom nível de investimentos e monitorar a propensão a poupar ou a consumir, do mercado. Isso significou um crescente avanço do Estado na esfera econômica, no plano da administração pública e da própria administração de empresas. As despesas públicas a partir destas intervenções cresceram enormemente e, claro, estas despesas pediram mais tributos, além de gestão mais racional. Tornou-se necessária a organização de um sistema de poder mais eficiente, mais rigoroso nos procedimentos e menos sujeito à manipulação política – enfim, aprimorar a burocracia.

O período que vai dos anos 1930 aos anos 1960 foi de crescente presença do Estado na economia e correspondente ampliação da burocracia. A isso se somaram intervenções no plano social, onde igualmente crescente demarcação legal de direitos se observou. Esse fenômeno correspondia também a expansão das ideias de justiça e de teorias de justiça em que a equidade adquiria papel central, embalada, evidentemente, pela ação dos sindicatos e partidos do trabalho (Carone, 1979; Santana, 2001).

Isso tudo se potencializou com o Estado de Bem-Estar Social, cujo nascimento se deu na Inglaterra, mas que rapidamente ganhou o mundo, acentuando políticas sociais que já vinham do século XIX.[i]

É essa macropolítica, ou melhor, conjunto de políticas (econômicas, sociais, administrativas) que entra em crise quando se fala da crise dos anos 1970, aquela a que nos referimos nas primeiras linhas. Sua explicitação se verifica nas estatísticas da OCDE e nos números de governos e empresas, cujos déficits obrigavam à corrida aos bancos. Uma onda de elevação das taxas de juros ajudou a inflar igualmente os preços das mercadorias e se verificou o até então não imaginado fenômeno que Gunnar Myrdal cunhou como estagflação, combinação inédita entre estagnação e inflação (Myrdal, 1997).

Em alguns países, como os Estados Unidos, os gastos de guerra, na escalada militar do Vietnã, potencializaram essa situação e acrescentaram um componente de sobrecarga tributária e elevação dos gastos públicos, com todas as suas mazelas.

 A reação a este quadro resgatou o discurso de Hayek, em 1944, acusando o excesso de Estado e de planejamento estatal. O Estado de Bem-Estar Social foi responsabilizado por perdulária política de gastos públicos e a burocracia vista como um estorvo, de que a sociedade era vítima e de que todos precisávamos nos livrar.

Nessas condições, se fortalece a ideia da Reforma do Estado e nela o consumerismo e o New Public Management, movimentos políticos, ideológicos e técnicos que, combinados, significavam o reconhecimento da necessidade de trazer o mercado e a gestão privada como referências principais para a gestão do Estado. Reproduzindo a história, Inglaterra e Estados Unidos empunham essa vertente reformista e a exportam para o mundo.

Também é nesse contexto que o mercado e a sociedade são chamados a recuperar certos conceitos de fundo liberal, isto é, do primórdio do capitalismo, quando se propugnava pelo laissez-faire e laissez-passer. Em contrapartida, conceitos como redistribuição, solidariedade, pleno emprego, regulamentação, impessoalidade se tornaram gradativamente peças fora do lugar. Ocuparam o espaço da sociedade as formulações que valorizam a flexibilização de direitos e critérios e o projeto pessoal, sob as mais diferentes formas, dentre elas a ansiosa possibilidade do “próprio negócio”, o empreendedorismo vulgar, sonho que estimulou os Programas de Demissão Voluntária das grandes empresas públicas e privadas.

Foi-se introduzindo uma ideia forte de valorização do mercado, que passou a ser o centro das preocupações e a referência do comportamento social, traduzindo-se isto na recuperação do personalismo e do individualismo como posturas e comportamentos razoáveis e justificados. Ao mesmo tempo, os rigores e controles típicos da burocracia foram sendo suspensos, em favor da agilidade dos processos e rapidez na implementação de obras e serviços públicos.

O objetivo deste artigo é problematizar o diagnóstico e a solução encontrados, sob o título de reforma do Estado, nos moldes adotados em vários países, inclusive o Brasil – onde nos anos 1990 pontificou o Plano Diretor da Reforma do Estado, motivo dessa edição especial da APGS. Temos a suposição de que, para além de uma crise localizada no Estado, há uma crise geral, em que o mercado e a sociedade são parte dela. Queremos compor um diagnóstico mais amplo do que aquele que aparentemente orientou a reforma do Estado e propor uma atuação destinada a reconhecer a integração destas três dimensões na ação reformista – Estado, mercado e sociedade.[ii]

 

1. Preâmbulo histórico

Cabe, inicialmente, fazer a identificação dos aspectos que colocaram o modelo de Estado até então vigente em questionamento. São aspectos inevitavelmente históricos, que abriram a porta para a emergência de propostas que, no Brasil, foram agitadas e implementadas a partir de 1990, em sintonia com “a onda global de reforma do setor público”, como se disse à época (Kettl, 2003, p. 75).

As críticas ao Estado brasileiro e seu funcionamento vêm de antes dessa data, ainda quando se confundiam a insatisfação de alguns segmentos sociais com a ditadura civil-militar e a insatisfação de certos setores empresariais com o Estado. Do final dos anos 1970 ao início dos anos 1980, a Federação das Indústrias de São Paulo e setores específicos da indústria de base e metalmecânica, principalmente, acusavam a necessidade de redução da interveniência do Estado. Antônio Ermírio, Claudio Bardela, Paulo Francine, Olavo Setúbal, Severo Gomes, Dilson Funaro, José Mindlin e outros grandes empresários paulistas, que lideravam associações empresariais, reclamavam da excessiva presença do Estado na economia e nisto acabavam identificando-se com a situação geral de esgotamento a que chegaram a paciência e o medo da sociedade brasileira com a ditadura (Bianchi, 2004; Diniz, 1994; Cruz, 1988). Bianchi acentua a importância nesse sentido do Documento dos oito, lançado por grandes empresários paulistas, em 1978, manifesto onde, segundo Diniz, “os signatários do documento revelaram seu compromisso com a meta da democratização”, realizando a combinação a que a autora já havia se referido quando disse que “as críticas à economia do período estariam frequentemente associadas ao questionamento do centralismo das decisões” (Diniz, 1994, p. 213 e 221).

A eleição presidencial realizada no final dos anos 1980 expressou a emergência desses dois movimentos. Um deles representava o influxo de várias mobilizações antiditadoriais, no sentido mais preciso; o outro expressava a vontade de mudança em relação ao Estado brasileiro e sua presença no plano econômico. O primeiro, constituído por vários atores sociais, de políticos a estudantes, de religiosos a operários, foi o protagonista de campanhas, greves e outras formas de luta que, por via da anistia, permitiram o retorno de lideranças banidas. Nesse ambiente, um tanto por manobra da ditadura, um tanto por necessidade e pressão de classe e segmentos sociais, as ondas de mudança também geraram o pluripartidarismo, em substituição ao bipartidarismo, que dividia a opção eleitoral entre ARENA e MDB. Esse pluripartidarismo resultou em 5 partidos nacionais e, nesse novo cenário, ocorreram as eleições de 1985, ainda indiretas, depois que milhões de brasileiros foram às ruas, pleiteando eleições diretas, sem sucesso. A Assembleia Nacional Constituinte, que veio a seguir, avançou nas mudanças e projetou a segunda redemocratização brasileira, em um mesmo século. Mais adiante, com um espectro partidário ampliado, ocorreu a disputa presidencial nas eleições diretas de 1989 (Rocha, 2013).

O segundo movimento, aquele do empresariado, via na mobilização popular e sindical um aliado, ainda que provisório. Partia da lógica de que o poder político centralizado precisaria ser quebrado para ensejar a abertura econômica. A relação entre abertura política e abertura econômica constrói-se desta forma. São os setores econômicos mais dinâmicos da economia industrial, em grande medida associados ao capital estrangeiro, puxando a adesão de parte expressiva do empresariado brasileiro aos palanques em que se reivindicavam as mudanças políticas referidas: anistia, reforma partidária, Constituinte e eleições diretas para Presidente da República. Na verdade esses setores empresariais tinham sua agenda própria (Saes, 1988; Sallum, 1996). Queriam o que um dos seus mais renomados líderes, Mário Covas, político paulista, fundador do Partido da Socialdemocracia Brasileira, PSDB, que seria governador de São Paulo, anunciava como um choque de capitalismo necessário. No choque de capitalismo incluíam-se redução de tributos, liberação dos fluxos de capitais, inclusive remessa de lucros, flexibilização de rigores corporativos e das reservas de mercado e diminuição/supressão de outras regulações limitadoras do capital nacional e internacional. Em outras palavras, queriam menos Estado e mais mercado, a que chamavam de abertura econômica em associação com a abertura política (Codato, 1997; Bianchi, 2004; Souza, 2004).

Não é à toa que o primeiro turno dessas primeiras eleições diretas pós-21 anos de ditadura, em 1989, se encerra com os três primeiros colocados, Collor de Mello, Lula e Brizola, todos com discursos que exprimiam a crítica ao Estado, com variadas motivações. O primeiro, Collor, acusando o Estado de lócus da corrupção e da dilapidação dos tributos pagos; o segundo, Lula, acusando o Estado pela violência contra trabalhadores e camadas médias, além da proteção às injustiças sociais e manutenção dos baixos salários; o terceiro, Brizola, acusando o Estado de não defender os interesses nacionais das perdas internacionais impostas pelos padrões de troca no mercado externo, sem falar de outras mazelas e iniquidades produzidas pela omissão do poder ou cumplicidade com os grupos econômicos poderosos.

Como disse Przeworski (1995, p. 42), “na verdade, as análises do término do keynesianismo, apresentadas em meados dos anos 70 pela esquerda (Habermas, 1975), pelo centro (Skidelski, 1977) e pela direita (Stigler, 1975), eram quase idênticas”. O autor se referia à Europa, mas poderia falar o mesmo do Brasil.

O resultado das eleições favoreceu o projeto empresarial, que nesse momento se desfez da aliança tática com o movimento popular e sindical e concentrou-se em levar adiante as propostas construídas nas esferas de decisão internacionais e que entre nós se chamava choque de capitalismo. Era o Consenso de Washington em andamento, incorporando um dos últimos países da América Latina que ainda continuava resistindo (Nogueira Batista, 2001; Williamson & Kuczynski, 2003). O Consenso de Washington, realizado naquele ano de 1989, por técnicos e cientistas sociais latino-americanos, estadunidenses e membros do FMI, Banco Mundial e BID, fazia um balanço dos resultados reformistas e traçava planos de continuidade de amplo efeito. Como disse o embaixador Paulo Nogueira Batista, próximo dos fatos, em seu texto O consenso de Washington,

 

nessa avaliação, a primeira feita em conjunto por funcionários das diversas entidades norte-americanas ou internacionais envolvidos com a América Latina, registrou-se amplo consenso sobre a excelência das reformas iniciadas ou realizadas na região, exceção feita, até aquele momento, ao Brasil e Peru (Nogueira Batista, 2001, p. 11)

 

Eleito, Collor de Mello, nos primeiros cem dias de governo, reduziu o tamanho do Estado central, promoveu extinção de órgãos e entes públicos, demitindo e pondo em disponibilidade funcionários, e implementou um programa de redução de alíquotas alfandegárias, além de outras medidas dirigidas a diminuir o papel do Estado e dos serviços públicos (Castanhar, 1990).

Estava claro que ali se operava o aparente paradoxo de um governante forte, de certa forma tirando proveito da cultura de autoritarismo construída em 21 anos, usando sua força para tornar menor o aparelho em seu poder. Esta operação político-administrativa incluía a luta ideológica nos meios de comunicação, do que foi exemplo o elefante que desfilava seu peso na TV, simbolizando o Estado burocratizado, ineficiente, gordo e lento. Tratava-se de uma peça publicitária do governo, exibida durante meses, nas redes de televisão brasileiras.

O mandato de Collor foi, entretanto, interrompido com um impeachment, antes de completados dois anos e depois de meses da campanha dos caras pintadas. Eram os estudantes que se maquiavam como guerreiros para realizar passeatas, acompanhadas por milhares de pessoas, de diferentes extratos sociais. Artistas, sindicalistas, políticos, jovens e adultos, mulheres, homens e crianças, participavam de manifestações públicas crescentes, nas principais cidades do Brasil, gritando “Fora, Collor!”, palavra de ordem construída pelos partidos de esquerda.

A interrupção do governo Collor se deu por uma conjunção de fatos: a luta interna no seu próprio grupo, de onde partiu a denúncia de corrupção no governo, o poder de reação ainda existente nos movimentos populares, estudantis e sindicais e a evidência de que a capacidade de Collor para dar andamento às reformas apregoadas pelos centros internacionais se revelava insuficiente. Ainda que as denúncias de corrupção tenham repercutido profundamente em vários setores da sociedade, o abandono a que Collor foi atirado, até pelos meios de comunicação que se diziam amigos (principalmente a Rede Globo), denotava que ele não havia costurado o arco de apoio parlamentar, empresarial e social capaz de viabilizar as mudanças e tirá-lo do pântano em que havia mergulhado.

Embora se possa falar de uma passagem discreta do sucessor de Collor, cujo histórico não sugeria grandes voos reformadores, a verdade é que o processo reformista continuou. O presidente Itamar Franco fez a transição entre o impeachment e a nova eleição presidencial. Nesse período, que transcorre de 1992 a 1994, o Programa de Privatizações continuou e “17 processos de privatização foram levados a cabo, com uma arrecadação total de U$ 4,7 bilhões, marca superior a do governo Collor e realmente inesperada para um presidente não identificado com posições liberalizantes” (Nunes et al, 2007, p. 37).

Nesse mesmo período, voltou-se a tratar da inflação, mais uma vez eleita a inimiga número 1. Em medida econômica semelhante a que havia controlado a inflação argentina, o governo atrelou parcialmente a moeda brasileira ao dólar (bandas cambiais) e abriu as portas aos produtos dolarizados, proporcionando um equilíbrio monetário consistente.

O sucesso da medida econômica conhecida como Plano Real foi de tal modo impactante que assegurou fácil vitória do candidato a presidente, o ex-ministro da Fazenda, herói da luta contra a inflação, Fernando Henrique Cardoso, candidato do PSDB. Ele se apresentava como porta-voz da modernização, exibindo um discurso que anunciava o fim da era Vargas, uma referência cheia de símbolos. Vargas simboliza, no Brasil, o desenvolvimentismo, a burocracia, o nacionalismo, a direção da política-econômica pelo Estado, o populismo, na acepção de diálogo direto com as massas e compromissos trabalhistas e populares. No âmbito do nacionalismo e do desenvolvimentismo, estavam as empresas estatais, dentre elas e destacadamente a PETROBRAS, em si a materialização do varguismo.

Fernando Henrique Cardoso tomou posse em 1995 e nesse mesmo ano se iniciou a reforma do Estado, através do Ministério da Administração e da Reforma do Estado-MARE, sob a direção do ministro Bresser-Pereira, cientista social paulista. Naquele ano, o governo emendou a Constituição Federal alterando o art. 171, que protegia as empresas nacionais, para estimular o investimento estrangeiro nas privatizações (BNDES, 2016).

O projeto vitorioso estava bastante articulado com as mudanças que já se verificavam nos países centrais, especialmente Inglaterra e Estados Unidos, como referido na Introdução. Mas também dialogava com a própria América Latina, como se lê no relato de Batista, acerca do Consenso de Washington. Vale lembrar que o varguismo foi a forma assumida no Brasil pelo modelo keynesiano-fordista-assistencialista-burocrático que fez os anos dourados do capitalismo, conforme Hobsbawm (1995), mas que naquele momento era submetido a fortes críticas e profunda revisão, sob o diagnóstico de que vivíamos uma crise do Estado.

 

2. Uma crise em três dimensões: crítica ao diagnóstico liberal

2.1 Crises de mercado e de Estado

A despeito de podermos contar o início da reforma brasileira a partir dos governos Collor e Itamar (1990/1994), é no governo do presidente Cardoso que se efetiva uma proposta fundamentada teoricamente e determinada a ser cumprida. Dispondo de governabilidade, eleito pela coligação de grandes partidos nacionais, o PSDB e o PFL, com rápida adesão do maior partido brasileiro, o PMDB, o presidente implementou com empenho a reforma do aparelho do Estado.

Seu ministro de Estado para a reforma, Bresser-Pereira, reproduziu as teorias correntes nos países centrais, difundindo ideias reformistas, por todos os meios de comunicação possíveis. Produziu uma sequência de textos, o Plano Diretor da Reforma do Estado e outras publicações destinadas a divulgar suas propostas.

Do conjunto de teses defendidas como fundamentos da reforma, devemos destacar quatro delas.

 Primeira tese:

A Grande Depressão dos anos 30 decorreu do mal funcionamento do mercado, a Grande Crise dos anos 80, do colapso do Estado Social do século vinte (Bresser-Pereira, 1997, p. 9). A grande crise dos anos 30 originou-se no mal funcionamento do mercado. [...] Esta crise, porém, não tem mais como causa a insuficiência crônica de demanda de que falava Keynes. Esta é a causa da crise do mercado nos anos 20 e 30. [...] Sua causa fundamental será agora a crise do Estado (Breser-Pereira, 1997, pp. 10/12).

 

Segunda tese:

A causa básica da grande crise dos anos 1980 foi o Estado: uma crise fiscal do Estado, uma crise do tipo de intervenção estatal e uma crise da forma burocrática de administração do Estado (Bresser-Pereira, 2003, p. 23).

 

Terceira tese:

O mercado é o melhor dos mecanismos de controle, já que através da concorrência obtêm-se, em princípio, os melhores resultados com os menores custos e sem a necessidade do uso do poder (Bresser-Pereira, 1997, p. 37).

 

Quarta tese:

Passados alguns meses, contudo, o apoio surgiu, primeiro o dos governadores estaduais, depois o dos prefeitos, empresários, imprensa e, finalmente, da opinião pública. De repente, a reforma passava a ser vista como necessidade crucial, não apenas interna, mas exigida também pelos investidores estrangeiros e pelas agências financeiras multilaterais (Bresser-Pereira, 2003, p. 22).

 

Estas quatro teses, a um melhor exame, se demonstram insustentáveis, e a compreensão disso é o caminho para ter maior clareza sobre as causas da reforma e as consequências dela.

A primeira tese realiza uma separação mecânica entre mercado e Estado, seguindo um viés de análise simplista. O sistema capitalista, no primórdio de sua história, como se lê em Marx, Engels e mais tarde em Hobsbawm (Hobsbawm, 2009, p. 23), prescindiu do Estado e obteve a sua consolidação através das trocas. Nisto se diferenciando dos modos de produção anteriores, onde a violência e a violência do Estado tiveram papel relevante (Marx, 2011). Esta questão é frequentemente não compreendida, mas desde o Manifesto Comunista, em sucessivas obras, Marx destaca a autonomia da burguesia na afirmação do seu projeto. No Manifesto, diz ele:

 

[...] chegamos forçosamente, ao se desenvolver a produção e a troca, ao atual regime capitalista de produção, ao monopólio dos meios de produção […] a degradação de outra classe […] proletários despojados […]. E todo esse processo se explica por causas puramente econômicas, sem necessidade de se recorrer ao argumento do roubo, nem ao da violência, nem ao Estado, nem mesmo a qualquer outra intromissão de caráter político (Marx; Engels, 1982, p.141)

 

Nos Grundrisse, reafirma

a diferença entre a produção do capital e a produção de estágios anteriores é ainda simplesmente formal. Rapto de seres humanos, escravidão, tráfico de escravos e trabalho forçado de escravos, aumento dessas máquinas trabalhadoras, máquinas que produzem produtos excedentes, aqui tudo isso é posto diretamente pela violência; no caso do capital é mediado pela troca (Marx, 2011, p. 644).

 

 Outra coisa é o que diz acerca da acumulação primitiva, quando o poder político e a violência têm papel ativo. A distinção dos dois períodos é tão clara, que Harvey, sem disfarçar o desconforto, diz que

 

por todo O Capital, mas também em muitos de seus outros escritos, Marx tende a relegar os processos de acumulação primitiva à pré-história do capitalismo. Uma vez acabada essa pré-história, entra em cena a “coerção silenciosa das relações econômicas” (Harvey, 2013, p. 257).

 

É dessa “coerção silenciosa das relações econômicas’, expressões de Marx, que falamos ao dizermos que o sistema capitalista, no primórdio da sua história, prescindiu do Estado.

 Mas com o passar do tempo, o Estado foi se convertendo de peso e entrave em gendarme da burguesia; e de gendarme à responsável pelo que Gramsci chama de hegemonia, através dos seus aparelhos/instituições, além das concessões a pressões sociais e políticas dos trabalhadores (revolução passiva). Portanto, o Estado e o mercado, desde muito tempo, são parceiros e se movimentam de modo associado. Do final do século XIX em diante, o Estado passa a operar de modo mais sofisticado, via políticas sociais, do que é exemplo Bismarck, na Alemanha. De certo modo, Disraeli na Inglaterra, no último terço daquele século, já havia dado sinais na direção de uma política social.

Nos anos 1930, a crise que se abre com o crack da Bolsa de Nova Iorque, prolonga-se por vários anos, não devido apenas ao mercado. Nos documentários, quem escuta Herbert Hoover, então presidente dos Estados Unidos, falar da crise, vê um governante submetido à inércia, em absoluto despreparo para enfrentar a dinâmica da época. Não era apenas ele que se encontrava assim; era o próprio Estado. O Estado norte-americano, como muitos Estados europeus, dentre eles a Inglaterra, permanecerão inertes diante de um quadro que já indicava a necessidade de intervenção anticíclica. O que se segue adiante é a saída da crise por meio de um macroprograma estatal, o New Deal, que abandonava a economia clássica e se deslocava para o que mais tarde se chamaria de keynesianismo. Alguns economistas negam este mérito do New Deal e atribuem a superação da crise à entrada dos EUA na segunda grande guerra. Seja como for, reconhecendo-se ou não o que revelam as estatísticas americanas sobre a década de 1930, que nos parecem provar o acerto do New Deal, o fato é que se o mérito cabe à mobilização de guerra, iniciada em 1939, voltaremos a reconhecer que foi o Estado que emulou o mercado, com suas demandas de guerra. O exame que Kalecki faz das estatísticas da época, em Teoria da Dinâmica Econômica, ajudam a compreender este raciocínio (Kalecki, 1978).

Portanto, não foi reformando o mercado que se saiu da crise dos anos 1930. Mas reformando o Estado e fazendo-o assumir o que no governo de Hoover se negava a assumir: a intervenção econômica.

No mercado também houve reforma, por imposição do Estado, sob a pressão dos trabalhadores e a interlocução sindicalista que marcou o governo de Roosevelt. O fim do trabalho infantil, jornada de 8 horas, monitoração dos salários, introdução do seguro desemprego, institucionalização da previdência e outras medidas desta natureza alteraram o mercado e em particular suas relações de trabalho. Pode-se dizer, com razão, que o fordismo continuou e, nesse sentido, a reforma do mercado foi menos profunda. Na verdade, o fordismo, com o keynesianismo, se fortaleceu como método, base técnica, da produção. Porém o fordismo que sobreviveu não era integralmente o fordismo de Ford, com suas restrições radicais aos sindicatos, mas o do seu herdeiro, que assume a companhia: um fordismo modernizado, civilizado, disposto ao diálogo, politizado.

Portanto, não tem consistência a tese de que tivemos uma crise de mercado, nos anos 1930, e não uma crise de Estado, mas sim de ambos, dado que ambos constituem um todo, que se movimenta articuladamente para que o sistema funcione com estabilidade.

A leitura metafísica que separa Estado de mercado na dinâmica econômica provoca uma distorção que se revelará na segunda tese da reforma do Estado: “a causa básica da grande crise dos anos 1980 foi o Estado”.

Tal qual não se deve separar Estado e mercado da crise dos anos 1930, igualmente não cabe atribuir isoladamente ao Estado a crise dos anos 1970/1980. A crise começa com o mercado e o Estado se revela incapaz de compensar a situação com as medidas intervencionistas em curso.

O sistema fordista de produção, caracterizado pela produção em massa, em grandes lotes, criou, no decorrer do tempo, dois problemas: um, a elevação da produtividade em escala crescente, sem o correspondente mercado consumidor, dando origem ao desemprego, agravando o pauperismo estrutural e levando ao subconsumo/superprodução; o segundo, a saturação do mercado com seus produtos padronizados. Ambos os problemas se potencializam: o desemprego reduz o tamanho do mercado consumidor ao pequeno grupo dos que já tinham, em níveis satisfatórios, seus estoques domésticos de bens duráveis; e a queda do consumo dos bens padronizados/repetitivos induz à redução da produção, que por seu turno provoca mais desemprego[iii].

Esse círculo vicioso/descendente repercutiu sobre a receita fiscal do Estado e reduziu sua capacidade de comprar, empregar e investir – cortando mais uma fonte de demanda e diminuindo o mercado consumidor.

Portanto, as famílias e o Estado se retraíram do mercado e tornaram aguda a crise. O desemprego aumentou a pressão social sobre o Estado, tanto pelos saques sobre os fundos públicos assistenciais, como pelas consequências generalizadas do desemprego, que vão da saúde à segurança pública.

Os capitais acumulados não eram reinvestidos porque o mercado existente estava saturado de produtos padronizados. De outra parte, o Estado, com o erário baixo, não comprava e não investia. Esses capitais foram se avolumando, operando no mercado financeiro de modo cada vez mais temerário, vivendo a aventura de circular pelo mundo em carteiras de investimento, na especulação com títulos e ações.

O Estado continuava a produzir externalidades negativas, agora pressionando os juros para cima, uma vez que, com receitas fiscais em queda, tomava sucessivos empréstimos aos bancos, sempre com spreads cada vez mais altos. Os juros altos elevavam a atratividade da poupança e da especulação, desestimulando o investimento e o consumo.

Esse cenário não é apenas de uma crise do Estado, porém, mais uma vez, a combinação de movimentos negativos do mercado e do Estado. Portanto, nessas condições, o Estado, reflexo da crise de mercado, passou a se constituir em problema, ao contrário da solução que veio a ser durante os anos dourados, 1945-1970. Seu papel comprador, empregador e investidor, no plano keynesiano de intervenção econômica e no plano do Estado de Bem-Estar Social, estava comprometido.

A ocupação de áreas de negócio atraentes – telefonia, energia, água e esgoto, siderurgia, mineração, transporte, portos, aeroportos, estradas e pontes, educação, saúde, seguridade social – continuava a mesma, com as empresas públicas e sociedades de economia mista, autarquias e fundações públicas operando estes setores. Sem entretanto poder investir neles.

Tinham-se, por isso, três problemas evidentes: 1. Como superar o impasse criado pela ausência do Estado como comprador e das famílias consumidoras, quando não pauperizadas, saturadas de produtos fordistas, padronizados e repetitivos; 2. Como voltar a investir os capitais acumulados e tirá-los da ciranda financeira, dando-lhes o destino da economia real e 3. Como prestar os serviços e produzir os bens, nas empresas e organizações públicas, na quantidade e qualidade requeridas pela economia e pela sociedade brasileiras, se o Estado não dispunha de recursos para isso.

Duas reformas foram necessárias, uma do mercado e outra do Estado. A reforma do sistema de produção fordista, portanto das empresas/mercado, e a reforma do aparelho do Estado, esta última (a) para que o Estado voltasse a ter capital para comprar e investir e (b) para que o Estado desobstruísse as áreas de negócio atraentes ocupadas pelas empresas públicas e sociedades de economia mista (econômicas) e autarquias e fundações (sociais).

No primeiro caso, deu-se espaço ao toyotismo e à administração flexível, nova base técnica, cujos pequenos lotes de produção foram promovendo inovações e obsolescência acelerada dos estoques domésticos. Essa foi a reforma de mercado necessária, do ponto de vista do capital. A onda da gestão da qualidade, ideologia da melhoria contínua e agregação de valor, imposta ao consumidor, foi varrendo os produtos padronizados de longa duração e substituindo-os por novos modelos ou novas funções dos bens. Esse procedimento atraiu os consumidores às compras, motivados pelos novos atrativos do mercado. A obsolescência ultrarrápida fazia a vida útil dos bens se reduzir drasticamente. Os produtos feitos para não durar obedeciam à lógica da destruição criadora/inovação, que Schumpeter (1982) defendera na Teoria do Desenvolvimento Econômico como a questão-chave da continuidade do sistema.

No segundo caso, a reforma do aparelho do Estado foi marcada pelas privatizações das empresas públicas e sociedades de economia mista (mineração, siderurgia, bancos públicos, etc.) e delegações de serviços públicos (energia, telefonia, comunicação, transportes, água e esgoto, pontes e estradas) que tiveram, respectivamente, as primeiras, seus ativos vendidos a grupos econômicos, nacionais e internacionais, e, os segundos, seus serviços delegados através das concessões públicas. Essas operações de venda e delegações/concessões permitiram que os capitais superacumulados, como dizia Harvey (1994), pudessem encontrar opções de investimento muito lucrativas, em condições financeiramente confortáveis, visto que eram empresas com grandes investimentos públicos já realizados (telefonia, energia, estradas, pontes, etc).

Não se pode considerar esse cenário como uma crise unicamente do Estado. Diria mesmo que a crise fiscal do Estado, aquela que o tornou vulnerável e incapaz, foi gerada pelo fraco desempenho do mercado, como se revela nos baixos índices de crescimento do produto bruto e na queda vertiginosa das taxas de lucro dos anos 1970/1980. Para não falar das consequências do desemprego e da sonegação crescentes, esta última moralmente explicada pelo argumento da inércia e corrupção do Estado. A crise fiscal não era uma crise proporcionada apenas pelo excesso de despesas do Estado, mas, também e principalmente, por uma crise de liquidez, essencialmente criada pela escassez de receita. Nos Estados Unidos, os anos 1970 e 1980 são de considerável queda da contribuição tributária das corporações e sobre as vendas (Lagemann e Bordin, 1995, p. 364). É dessa época o rompimento de Nixon com o acordo de Bretton Woods e também o pico das taxas de juros pagos pelo tesouro dos Estados Unidos aos que adquiriam seus bônus (Munevar, 2012, p. 216). No Brasil, Gobetti e Amado (2011) demonstram como cai a renda disponível do setor público entre os anos 1970 e 1980 e como também caíram as despesas de consumo e salário. Sobre o mesmo assunto, Simonsen (1989, p. 4), em artigo intitulado “A conta-corrente do governo: 1970-1988”, também vai afirmar que “o verdadeiro drama é que o governo perdeu receita tributária real”.

Ainda que fosse o discurso corrente, na mídia e na academia, não era a ação perdulária do Estado o motivo das privatizações e concessões. Mas sim o fato de que a grande operação da reforma do Estado consistia em promover a transferência de ativos e serviços ao setor privado para propiciar a revalorização, na economia real, dos capitais superacumulados. A seguir, em anos recentes, emergiram as parcerias público-privadas, em que o Estado propicia não só a oportunidade do investimento, mas seu próprio financiamento, através das agências de fomento, onde pontifica o BNDES. A solução para o segundo problema do mercado – onde investir os capitais acumulados – se transformou em processo contínuo de cessão e prospecção de negócios pelo Estado, para o mercado.

Estamos dizendo que a questão principal dos anos 1980 continuou a ser o mercado e por extensão o Estado, precisamente o capital em crise. Apontar para o Estado foi um expediente hábil para poder reduzi-lo, principalmente pela via da transferência de ativos e serviços públicos para o setor privado. Nesse sentido, a letra (b) da nossa problemática acabou tendo resposta, ainda que parcial, pela via da transferência das atividades/serviços ao setor privado, não pela privatização apenas, mas também pela delegação e a cessão de serviços, cujo mecanismo usual são as concessões públicas, as parcerias público-privado e arranjos semelhantes.

A terceira tese, que atribui ao mercado a virtude de melhor controlar as atividades públicas, tem origem na ideia de que a concorrência é o meio que assegura essa capacidade superior em regular a vida pública. Mas, como observam Sappington e Stiglitz (1987), a concorrência só é capaz de funcionar, como um instrumento de controle, em condições de concorrência perfeita, muitos vendedores e muitos compradores, não sendo o caso dos setores e serviços privatizados e delegados/concedidos, em sua maioria monopólios e oligopólios. Tanto isso é verdade que foram criadas inúmeras agências reguladoras, uma para cada área de negócio delegada ao setor privado (ANATEL, ANEEL, ANVISA, ANS, ANTT, etc.). Fosse o mercado capaz e suficiente, seria desnecessário distribuir “xerifes” para combater as várias irregularidades e abusos que enchem os juizados, com montanhas de processos judiciais dos consumidores lesados.

 Entenda-se portanto que o mercado não é capaz e suficiente para controlar os negócios, sequer ajudado pelo aparato de regulação e fiscalização das agências reguladoras, autarquias do Estado.

Finalmente, resta a tese de gradual aceitação, compreensão e adesão da sociedade, da imprensa, etc., à reforma do Estado. “De repente”, em apoteose de acolhimento, a reforma passou “a ser vista como necessidade crucial, não apenas interna, mas exigida também pelos investidores estrangeiros e pelas agências financeiras multilaterais”, disse Bresser-Pereira em passagem já citada. Trata-se de uma explicação para a popularidade das reformas. É uma explicação somente menor, em ingenuidade, que a “informação”, oferecida na mesma obra, de que o assunto não fez parte da campanha eleitoral de Cardoso, mas logo ao início do governo se transformou em prioridade (Bresser-Pereira, 2003).

De acordo com Nunes (2007),

 

já no processo eleitoral de 1994, o então candidato à Presidência da República, Fernando Henrique Cardoso, dava sinais em seu programa de governo (Mãos à obra, Brasil) de que retomaria as propostas de desestatização e de reforma do Estado (Nunes, 2007, p. 38).

 

A eleição de Cardoso e assunção do ministro Bresser-Pereira aconteceram em 1995 e o presidente eleito foi Ministro das Relações Exteriores e era, até pouco antes das eleições, o Ministro da Fazenda, a segunda maior autoridade da república no Brasil, em termos práticos. É absolutamente inacreditável, no sentido de extraordinário, que aquele ministro, então eleito presidente, em 1995, não tivesse conhecimento do Consenso de Washington, verificado, como já vimos, em 1989, com o acompanhamento da diplomacia brasileira.

 Será razoável a ordem/cronologia de acolhimento da proposta - do interior do país para o exterior? Lendo-se o testemunho de Nogueira Batista, sobre o Consenso de Washington, observando-se o que fez o ex-presidente Collor de Mello nos seus primeiros cem dias, é mais provável que o inverso tenha acontecido (Nogueira Batista, 2001). Tudo leva a crer que a quarta tese de Bresser-Pereira deva ser lida do final para o começo. Isto é, a partir da exigência dos investidores estrangeiros e agências multinacionais para as autoridades públicas brasileiras (Consenso de Washington), destas para a imprensa e dela para a opinião pública.

Essa trajetória corresponde àquela feita pelo próprio Bresser-Pereira, cujas referências, inclusive conceituais, foram reproduções do que se havia realizado em especial nas experiências do Reino Unido e Estados Unidos. Talvez por isso o managerialism, a valorização dos modelos de gestão privada, que está na base do que se anuncia sob o título de administração pública gerencial, é acompanhado pelo consumerism, que vê como saída a definição do cidadão como “cidadão consumidor” (Kettl, 2003, p. 86) ou “cidadão-cliente” (Bresser-Pereira, 1997, p. 42; Bresser-Pereira, 1998, p. 122).

Essa fórmula, evidentemente uma reprodução do que se viu nas primeiras experiências reformistas dos anos 1970 e 1980, foi reafirmada por Bresser-Pereira anos depois quando relembrou os “dois princípios básicos” da reforma – 1. “gestores públicos mais autônomos”; 2. “o Estado só deve executar diretamente as tarefas que são exclusivas do Estado [...] todos os demais serviços devem ser contratados com terceiros”(Bresser-Pereira, 2004, p. 13). À parte o que vem a ser “tarefas exclusivas do Estado”, matéria sujeita à vontade política, tudo o mais se pode ler na literatura sobre a reforma do Estado nos países centrais e suas áreas de influência. Vale dizer, este segundo princípio está inteiramente de acordo com a ideia consumerista de que o mercado é o melhor mecanismo de controle.

Tratando-se do caso brasileiro estamos tocando em experiências de outros países, dado que uma característica das reformas da época, como de seu fundamento, o New Public Management, é se apresentar como portadoras de avaliação e de solução universais (Peters & Pierre, 1998; Lustosa da Costa, 2008). Aliás, cabe dizer que, a despeito de nuances e características culturais, o caráter internacional do modo de produção capitalista promove inegável reprodução de padrões do centro para a periferia – sejam padrões de problema, sejam padrões de solução.

 

2.2. Crise da sociedade

A relação Estado, mercado e sociedade, como movimento de uma totalidade, se expressa na sociedade igualmente como uma história de crise e luta. É nessa condição contraditória que todo o século XIX foi fortemente marcado pela afirmação do indivíduo. Foi o século do liberalismo, ainda que nele tenham se apresentado ao mundo as suas críticas mais radicais.

O liberalismo sai vitorioso das revoluções do século XIX em especial no plano econômico, quando grandes empresas e o capitalismo como modo de produção parecem se consolidar. Nesse ambiente, cresce a importância do singular, no que é muito bem representado pelo pensamento nietzscheano, a concepção do super-homem e outras conjecturas sobre a vontade de potência do indivíduo.

Do final do século XIX ao início do século XX, mais intensamente após a crise dos anos 1930, dá-se uma virada, em que o individualismo é superado no plano teórico, na prática política e no modelo de produção e circulação da mercadoria.

No plano teórico, o marxismo, por excelência uma leitura anti-individualista, afirma-se como corrente de pensamento dos grandes projetos coletivos, Durkheim expõe suas teorias da solidariedade e a prevalência da sociedade sobre o indivíduo, encontrando até no suicídio uma natureza social (Durkheim, 1978) e Weber vai dizer que a ação social é aquela que se orienta pelo comportamento do outro (Weber, 2009). Para ele, o outro são indivíduos, conhecidos ou não, poucos ou a própria massa.

No plano político, verificou-se a afirmação da democracia, cujo avanço foi reconhecido até por quem não cultivava tantos amores por ela. Carl Schmitt, por exemplo, em A crise da democracia parlamentar, reconhece que a história até então teria sido a história da ampliação da democracia: “podemos resumir a história das ideias políticas e das teorias do Estado em um único slogan: a marcha vitoriosa da democracia” (Schmitt, 1996, p. 23)

A democracia, como já foi lembrado por Bobbio, é um breve no individualismo (Bobbio, 1986). Afinal, sob qualquer conceito, ela consiste, em última palavra, na subordinação da vontade individual à vontade coletiva.

Mas o discurso da prevalência do coletivo também é confirmado pela vitória da república, cuja distinção é exatamente a superioridade do público sobre o privado. Daí a existência do conceito de interesse público em todas as constituições republicanas. Mesmo em monarquias sobreviventes, o parlamentarismo se encarrega de introduzir padrões republicanos de vida. A revolução Russa igualmente, é uma vitória da noção de superioridade do coletivo sobre o indivíduo, porque a revolução era antes de tudo os soviets (conselhos), como disse o próprio Lênin em texto crítico e autocrítico, escrito por ocasião do 4º aniversário da revolução (Lênin, 1970). Ali ele faz questão de dizer que a revolução tinha realizado muito, mas que faltava realizar sua principal obra, o governo dos soviets. Finalmente, Woodrow Wilson cria em Versalhes a Liga das Nações, quando 44 países concordam em agir coletivamente em defesa da Paz.

No plano econômico, o modelo taylorista de gestão da produção, onde se encontra o homem de primeira classe, portanto o indivíduo, sobre quem Taylor colocava toda a expectativa e todos os méritos, cede lugar ao modelo fordista. O modelo fordista trouxe à produção a linha de montagem, onde todos têm que ser iguais na capacidade produtiva e se movem coletivamente como se homens de primeira classe. Como observa Gramsci, em Americanismo e Fordismo, o ordenamento psicofísico é coletivo (Gramsci, 1968).

Mas além do sistema de produção, a distribuição é concebida em função de uma sociedade de massa, uma sociedade sem distinção individual, padronizada, razão pela qual o próprio Gramsci supôs que o modelo fordista não vingasse na Europa.

A força do conceito de igualdade, cada vez maior nas democracias e repúblicas, ou no “espírito republicano” das monarquias modernas, se impôs tanto ao individualismo que mesmo os países cujas classes e segmentos eram separados por camadas de chumbo, como disse o filósofo italiano, sucumbiram diante dos carros e demais mercadorias padronizadas do modelo fordista. O que se impunha no fordismo não era a cultura de um povo, mas algo mais forte; uma forma do modo de produção, cujo estágio de desenvolvimento se pretendia o mais avançado, aquele que melhor produtividade obtinha, portanto o que mais valor excedente gerava e maiores lucros proporcionava.

A segunda guerra mundial foi a primeira reação política do individualismo – nazistas e fascistas tinham como inimigos as formas coletivas da democracia burguesa e da democracia socialista. Seus projetos encontravam eco na ideia do super-homem, de raças especiais, de singularidades e não de igualdade e coletividade.

A segunda reação, teórico-política, foi de Hayek (1987), com seu O caminho da servidão, assumido pelo próprio autor como um discurso político contra as formas de intervenção do Estado na economia e na sociedade.

Mas ainda não chegara o tempo do pleno resgate do individualismo. Talvez a mais irônica prova disso seja o fato de que o próprio Hayek vai, em 1947, se organizar em um coletivo, a Societée de Mont Pelerin.

A partir do segundo pós-guerra travam-se batalhas longas entre a visão coletiva e a visão individualista, com aparentes vitórias do coletivismo: o discurso teórico marxista se expande, os existencialistas e outras correntes libertárias se aproximam, os partidos do trabalho crescem e os sindicatos atuam amplamente.

Mas as respostas pontuais de lado a lado vão acontecendo: golpes de Estado na América Latina versus a revolução dos Cravos em Portugal e a redemocratização na Espanha; Estados Unidos e Vietnã.

 Em 1974, Hayek ganharia o Nobel de economia, na solidão do seu templo, em Freiburg, mas teria que dividir com o seu oposto, o socialista Gunnar Myrdal, também reconhecido pela Academia – um fato cujo conteúdo político jamais pode ser negado e não se pode ignorar. Portanto, até aquele momento a reação individualista ainda não obtivera pleno sucesso. Estava em transição.

Foi exatamente com a crise do modelo keynesiano-fordista que se iniciou uma nova virada de concepção e o individualismo, no bojo do neoliberalismo, começou a se reafirmar na contemporaneidade. Mais uma vez vamos encontrar na crise do modelo de produção do modo capitalista a origem das manifestações superestruturais, a confirmar Marx quando diz que

 

o conjunto das relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política a qual correspondem determinadas formas de consciência social (Marx, 1983, p. 24).

 

O fordismo, cuja produção em massa é para um mercado de massa, deixa de encontrar a receptividade antes existente, não porque os seus produtos são ruins, mas porque os seus produtos são iguais. Já fazem parte do estoque doméstico dos consumidores possíveis. São rejeitados por uma sociedade cada vez mais segmentada na renda, querendo se diferenciar em público, no que o fordismo com sua concepção de produção padronizada, em massa, não atende.

A crise do fordismo significa menos receitas, menos tributos, como já vimos em tópico anterior. Isto repercute sobre o aparelho do Estado, que, até então, pela via do socialismo, do keynesianismo e do Estado de Bem Estar Social, vinha sendo o ator principal dos projetos coletivos. O Estado entra em crise como um desdobramento da crise do sistema como um todo e em particular do sistema fordista e se torna inadimplente com suas responsabilidades sociais, agravando o clima de salve-se quem puder.

A saída encontrada pelo sistema para dar continuidade ao seu processo de reprodução foi: 1) a destruição criadora e a inovação, como já aconselhava Schumpeter, fazendo bom uso de suas leituras atentas de Karl Marx, e 2) a apropriação da acumulação social realizada pelo Estado, através das privatizações e delegações. Em ambos, os procedimentos põem-se em cena novamente o individualismo.

A destruição criadora e a inovação vão levar à produção flexível de pequenos volumes e à customização, expressão usada por Toffler (1985) para representar a produção personalizada, individualizada - o contraponto radical à produção fordista.

A semicustomização, montagem disponível para os clientes, cuja finalidade é ter alguns itens no produto a critério da escolha do comprador, e a customização, já referida, são por excelência a opção pelo gosto do indivíduo ou pelo que se pode, nestes tempos de indução mercadológica, chamar de preferência do consumidor.

As privatizações e as concessões públicas transferem para pequenos grupos e indivíduos os grandes empreendimentos públicos, em licitações de oportunidade, transformando da noite para o dia, empresários médios, em multimilionários ‒ que comandam operadoras de telefonia, redes de energia elétrica, companhias petrolíferas e siderúrgicas, mineradoras e sistemas de comunicação social. A onda liberal vai resgatando valores e mitos, revaloriza o herói schumpeteriano, que o economista austríaco chamou de empresário/empreendedor.

A expressão (empreendedor) ganha o gosto público e se difunde em versão inteiramente vulgarizada, em que a figura revolucionária e disposta a quebrar paradigmas dá lugar a qualquer investidor, de qualquer monta ou mercadoria, dando-se o título quase honorário de empreendedor ao proprietário de um botequim, ao dono de uma fábrica de confecções ou a uma manicure solitária, a Micro Empreendedora Individual, MEI.

O empreendedorismo é a ideologia contemporânea do mercado. Milhares de trabalhadores fazem acordos com suas empresas, deixando-as em troca de um valor em dinheiro, os conhecidos Planos de Demissão Voluntária, e investem aquele valor em um empreendimento, no antigo sonho reabilitado de ter seu próprio negócio e ser patrão de si mesmo. Estas expressões ganham popularidade e são infladas pela literatura de auto-ajuda, ocupando estantes de livrarias como se fossem textos científicos ou técnicos. Seja o empreendedorismo schumpeteriano, seja o empreendedorismo vulgar, incentivado pelo SEBRAE, a ideia do self made man (re)toma conta do mercado. O passo adiante foi o mercado englobar a sociedade. Fazer-se o centro das atenções e a referência principal da vida social, quase uma absolutização, onde a pergunta dominante é: “O que deseja o mercado?”

No plano teórico, o conceito de mercado político (Schumpeter) se consolida e a lógica da ação coletiva de Mancur Olson, publicada em 1965, ganha espaços acadêmicos. Ele questiona o altruísmo das mobilizações e organizações políticas e sociais, destacando o fundo individualista, que de fato, no seu entender, mobilizaria as pessoas para uma aparente ação coletiva (Olson, 1999).

Nesse diapasão, a gestão privada é eleita pela literatura de aeroporto e por acadêmicos improvisados como provida de ferramentas milagrosas e várias vezes superior à gestão pública. Valor público e valor privado são subsumidos como diferenciais e a gestão pública assimila padrões gerenciais, no que ficou conhecido como gerencialismo, expressão sintética do New Public Management.

No plano político, as classes cedem lugar ao cidadão. Fala-se de cidadania, como se falava anteriormente em contribuinte, uma identidade individual associada ao tributo, agora substituída por uma nova identidade individual, desta feita associada a polis. A seguir, esse caráter individualista da vida é reforçado nas reformas do Estado, quando esse cidadão adquire um qualificativo, cidadão-cliente. Sintonizando-se com o mercado, o cidadão melhor se qualifica como consumidor no discurso universal, reproduzido pelo então ministro Bresser-Pereira. Em sua explicação, citada no tópico anterior, “o mercado é o melhor dos mecanismos de controle, já que através da concorrência obtêm-se, em princípio, os melhores resultados com os menores custos e sem a necessidade do uso do poder”.

A democracia cede lugar ao pluralismo. Partidos políticos que se apresentam na tradição das agremiações comunistas e socialistas, em que a democracia se erigia à fonte de centralismos, dão lugar ao pluralismo no seu funcionamento. Frações e grupos são aceitos como legítimos, criando-se sublegendas disfarçadas e distribuindo-se representação para acomodar correntes e lideranças minoritárias e até facções fronteiriças e em conflito aberto. A ideia de unidade sindical pela unicidade cede espaço à ideia da unidade na diversidade de representações sindicais. Multiplicam-se os sindicatos no interior de uma mesma categoria de trabalhadores e até as Centrais sindicais, cujo título supõe a centralização, são múltiplas, dando asas a projetos pessoais e grupais.

O direito das minorias ganha um destaque até então desconhecido. A política dá espaço ao jurídico, cuja característica mais forte é a possibilidade da ação individual ou do pequeno grupo, que às vezes, nos julgados, prevalecem sobre coletivos, exatamente em nome do direito das minorias.

Finalmente, a telecomunicação viabiliza a convivência social solitária, um aparente paradoxo superado pelos correios eletrônicos e pelas redes sociais. À distância, protegido e muitas vezes incógnito, pode-se dizer a qualquer audiência ou espectador o que se achar por bem e até se passar por quem de fato não se é. Pode-se dizer, a milhares de pessoas, todas as coisas, pensadas e impensadas, informações verdadeiras ou falsas, divulgar ideias e fazer convocações, sem ter que passar pela crítica do próximo ou pelo funil da democracia, que poderá ou não acolher o que penso e o que quero dizer ou fazer.

As manifestações de rua em 2013, ocorridas no Brasil e em outros países, a partir das redes sociais, são uma expressão disso. O facebook, uma rede social de grande popularidade, espaço onde se verifica o que chamamos aqui de convivência social solitária, saiu de casa. As pessoas compraram cartolinas e nelas escreveram o que já diziam às suas audiências na rede social. Suas denúncias e reclamações estavam sintonizadas com suas reivindicações e motivações pessoais, individuais, que se podiam constituir, no máximo, em pequenos grupos, parecendo confirmar o que Olson escreveu sobre a ação coletiva.

Mais uma vez, contraditoriamente, as denúncias e reclamações passam pela característica mais marcante da sociedade contemporânea: o individualismo. Elas denunciam a corrupção, que outra coisa não é senão a apropriação individual de fundos públicos, coletivos. Elas denunciam a crise da democracia parlamentar, exatamente no ponto em que, ao contrário de representar seus coletivos eleitorais, os mandatários utilizam para seus interesses particulares os mandatos que recebem do povo. Elas denunciam a ausência de políticas efetivas nas áreas da saúde e da educação, que são serviços públicos frequentemente tratados em políticas públicas universais, amplas, de massa. Elas denunciam o distanciamento dos partidos políticos e dos sindicatos, que se fecham em suas cúpulas para priorizar interesses particulares ou no máximo grupais, em detrimento das grandes massas do povo, seus eleitores.

Em síntese, elas denunciam a sociedade contemporânea, ainda que pelos meios individualistas que esta cultivou como símbolos da liberdade, do progresso tecnológico e de um tempo novo – o mesmo tempo novo em que os projetos coletivos estão em profunda crise e que discursos e posturas retrógrados são resgatados.

 

Conclusão

A reforma realizada, na verdade, esteve mais voltada para atender à crise do mercado, constrangido pelo que Harvey, acertadamente, chamou de superacumulação dos capitais. Uma vez que foram estes capitais acumulados que vieram a ser atendidos, sob a ideia mater de que a gestão privada é o que melhor se presta à administração pública. Afirmou-se o valor privado não só adotando os padrões e ferramentas gerenciais, mas também estimulando concepções empresariais; não só privatizando empresas públicas, mas também delegando ao setor privado a condução de serviços públicos – energia, telefonia, água e esgoto, portos e aeroportos, transportes e vias públicas, educação e saúde.

Os capitais estavam acumulados porque não encontravam revalorização na produção. Os limites do mercado se impunham, agravados pelo padrão repetitivo do fordismo que desestimulava a renovação dos estoques domésticos, entre os que podiam comprar. O Estado, com baixa receita, também se abstinha de consumir e investir. Mas agora esses capitais acumulados contaram, para sua recuperação, com a obsolescência planejada e acelerada, típica da destruição criadora, e também dispuseram dos espaços de investimento criados pelas privatizações, delegações e parcerias. De um só golpe, mudam-se o mercado e o Estado.

Essa reforma interessou à parcela da sociedade que tem sido beneficiária de todas as reformas conservadoras das desigualdades pessoais e regionais. Quando olhamos o histórico desse processo e o quadro geral do mercado, da sociedade e do Estado na atualidade, percebemos então que aquilo que se apresentou como reforma do Estado estava inserido em uma ampla contrarreforma, para quem esperava ver esta palavra, reforma, associada a efetivamente novos e melhores tempos. Uma contrarreforma que cobriu todas as dimensões, dando ao mercado a primazia da vida social, à sociedade um individualismo revigorado e ao Estado um papel servidor da reprodução do sistema, sem disfarces e sem limites.

A despeito de se apresentar como uma reforma adstrita ao Estado e, em certos momentos, apenas ao aparelho do Estado, no movimento que se verificou sob o impulso da onda neoliberal, promoveram-se mudanças nas três dimensões abordadas. Deixaram-nos novas crises, expressas exatamente nos efeitos malsãos dessas mudanças, que nos legaram condições mais críticas do que aquelas encontradas nos idos de 1970/80. Um Estado que não responde às demandas dos mais necessitados, mas se avalia como mais eficiente, um mercado que sobrepõe o lucro a todos os valores e refaz os padrões liberais do século XIX, mas se considera novo e inovador, e uma sociedade que se tornou ainda mais voltada para si do que no passado, ainda que se julgue mais conectada e global.

Quando colocamos em evidência os problemas do Estado, do mercado e da sociedade estamos interessados nas condições básicas para se pensar a reforma como um passo adiante na sociabilidade contemporânea.

Em se tratando de reforma – uma vez não se tratando de revolução – a reforma que se requer é aquela que afirme o valor público dos serviços públicos, o que implica em profunda autocrítica prática em relação à transferência de ativos e serviços para o âmbito do controle privado – submetido apenas à regulação das agências reguladoras, autarquias ineficientes e elas próprias sem controle.

É igualmente o caso do mercado, carecendo de reforma que estabeleça novos padrões de relações sociais de trabalho e novas relações com o consumidor, cujas dificuldades de autodefesa continuam grandes.

Neste caso, mais uma vez nos limites da reforma, no âmbito da produção/circulação, uma agenda de mudanças precisaria ser assumida. A título de exemplos: a) a redução da jornada de trabalho, que continua nas bases defendidas no século XIX e praticadas desde o início do século passado; b) a atualização da cesta básica e a fixação do salário-mínimo levando-a em conta rigorosamente; c) a adoção de tecnologia avançada sem desemprego, usando-se os avanços científicos e técnicos para a redução da jornada, melhoria das condições de trabalho, qualidade dos produtos e da vida; d) acesso dos trabalhadores aos bens que produzam; d) adoção do regime co-gestionário, com Conselhos paritários, inclusive o Conselho de Administração, cobrindo todas as esferas de decisão da empresa; e) referendo periódico dos trabalhadores para a manutenção das direções e chefias; f) apoio prioritário, das agências de fomento e bancos públicos, para organizações de economia solidária ou social; g) participação dos consumidores nos conselhos co-gestionários das empresas; h) credenciamento dos cidadãos e sindicatos de trabalhadores para o exercício da fiscalização sobre o mercado, as obrigações tributárias, sociais/previdenciárias, trabalhistas e ambientais, e as condições de fabricação e prestação de serviço das empresas; i) credenciamento das entidades representativas da sociedade civil para a fiscalização e controle externo sobre os órgãos públicos de controle, fiscalização e regulação.

Não é possível pensar em participação dos excluídos na vida pública sem uma reforma no mercado que reduza os desgastes e a degradação física e mental, a que são submetidos os trabalhadores brasileiros, em jornadas esgotantes, que se tornam piores pela precariedade dos transportes coletivos, má moradia, subnutrição e insegurança pública. Nenhum trabalhador terá energia suficiente para, enfrentando uma semana longa de trabalho, ainda se dedicar nas raras horas vagas a debates e estudos sobre os temas da política, ainda que tenha toda a consciência possível sobre a importância disso.

As propostas apresentadas acima, a título de reforma do mercado, são propostas que podem parecer inexequíveis, se a visão de reforma continuar submetida à lógica de que há uma classe dominante a quem não se pode contrariar, mas ao contrário, a quem se deve servir em todas as situações.

Essas propostas revelam anacronismos, senão iniquidades, que continuam intocáveis, apesar de discursos sobre mudanças e pretensões de desenvolvimento e qualidade de vida. Há aqui problemas que vão da inabalável extensão da jornada de trabalho, que no século XXI, ao contrário de diminuir, tem se elevado, sob os mais variados expedientes, até o hábito de sonegação de impostos, que o setor do comércio de algumas cidades já adotou como uma prática naturalizada.

Finalmente cabem algumas observações sobre a reforma que também se torna necessária no âmbito da sociedade, estrito senso.

Quando muitas pessoas deixaram o facebook de lado e saíram às ruas, nas grandes e médias cidades, atendendo ao chamado do mesmo facebook e outras redes sociais, elas certamente fizeram menos do que vinham fazendo, em se tratando de comunicação social. Ao saírem às ruas com suas mensagens, elas reduziram o círculo de seus leitores àqueles que as viram passar e aos mais próximos que as acompanharam de perto nas passeatas. Maior alcance e mais tranquilidade elas teriam se permanecessem sentadas à frente dos seus computadores, emitindo dizeres e opiniões. Essa renúncia ao conforto e à segurança doméstica, à atuação semiclandestina, muitas vezes protegida no anonimato, desejava o que em troca?

Elas esperavam ser vistas e ouvidas pelas autoridades, pelos dirigentes políticos, pelos que têm decidido suas vidas, e a que não alcançam em suas redes sociais. Elas se deram conta de que, por mais fortes que sejam suas mensagens e seu meio de comunicação eletrônico, não conseguem, salvo exceções, chegar aos computadores dos poderosos. Apesar de não devermos dizer isso de todos que ocuparam as ruas nos protestos mais recentes, uma vez que outras e contraditórias motivações também existiram, uma grande parcela dos manifestantes queria ser ouvida e vista, para de algum modo incidir sobre o poder e provocar mudanças.

Há, portanto, um potencial de reaglutinação na sociedade, que os atores políticos precisam revalorizar, retomando a organização coletiva e atuando cotidianamente, ao invés de se perderem em organizações eventuais e de eventos ou limitarem sua ação às eleições periódicas.

O Estado, o mercado e a sociedade precisam de reformas profundas. Reformas que levem ao desenvolvimento não só econômico, mas também ao desenvolvimento social e político, cuja base certamente está na sociedade civil.

 

Referências Bibliográficas

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[i] Uma respeitável polêmica sobrevive acerca do Estado de Bem-Estar Social no Brasil. Autores como Potyara Pereira (1997, 2000 e 2009) e Ricardo Silva (2011) o negam.  Mas outros autores como Maria Lúcia Teixeira Werneck Vianna (1991), Sônia Draibe (1993) e Sônia Fleury Teixeira (1985) pensam diferente e Luís Fiori (1997), em seu conhecido artigo sobre o Welfare State, admite a hipótese, o classificando como meritocrático. Ainda que nos filiemos entre os que reconhecem o EBES no Brasil, sua menção nesse artigo diz mais da ação social do Estado, a título de solidariedade nacional, do que de um modelo típico dessa ação.

 

 

ii Reconhecemos o conceito de Estado em Gramsci: “Estado = sociedade política + sociedade civil” (Gramsci, 2000, p. 244) e a caracterização de Marx da sociedade civil, que “compreende todo o intercâmbio material dos indivíduos [...] a vida comercial e industrial”, portanto, incluindo o mercado (Marx e Engels, 2009, p. 119). A decomposição que ora fazemos – Estado, mercado e sociedade civil – nas restritas acepções liberais, tem objetivos didáticos e argumentativos.

 

iii  Conhecemos a tese que atribui à queda tendencial da taxa de lucro a origem das crises do capital. Mas entendemos que na verdade o que Marx diz na Seção Terceira de O Capital nos indica que não é exatamente a Lei o demiurgo das crises, mas o conjunto de contradições em que o capital constante se eleva, não só provocando a queda na taxa de lucro, como também uma massa de mercadoria que não encontra condições de circulação e consumo, por isso não se realiza e não se valoriza. “Portanto, as mesmas leis se encarregam de produzir para o capital uma massa absoluta de lucro crescente e uma taxa de lucro decrescente [...] as mesmas causas que produzem a tendência a baixa na taxa de lucro determinam uma acumulação acelerada do capital e, portanto, o aumento da magnitude absoluta ou massa total de trabalho sobrante”, diz Marx (2001, p.220 e 225). Trata-se, portanto, de uma totalidade, não de um fator. Textualmente, sintetizando o fenômeno, diz Marx: “A imensa capacidade produtiva, com relação à população que se desenvolve no regime de produção capitalista, e, embora não na mesma taxa, o aumento dos valores-capitais (não só o de seu substrato material), que aumentam muito mais rapidamente que a população, se acha em contradição com a base cada vez mais reduzida em proporção à crescente riqueza - para  a qual esta imensa capacidade produtiva trabalha – e com o regime de valorização, deste capital cada vez maior. Eis a crise” (Marx, 2001, p. 263). No mesmo Livro III, em passagem mais adiante, em que acentua sua referência ao processo produção-circulação-consumo, ele vai dizer: “A razão última de toda verdadeira crise é sempre a pobreza e a capacidade restringida de consumo das massas, com o que contrasta a tendência da produção capitalista a desenvolver as forças produtivas como se não existisse mais limite que a capacidade absoluta de consumo das massas (Marx, 2001, p. 455). Se precisamos de um ponto de partida, esse se encontra na contradição entre a produção social e a apropriação individual. Esse “regime de valorização”, caráter do capitalismo, é a fonte das contradições do modo de produção, como, aliás, diz Engels: “Os produtos, criados agora socialmente, não passavam a ser propriedade daqueles que [...] eram realmente os seus criadores, mas do capitalista. Nessa contradição, que imprime ao novo modo de produção o seu caráter capitalista, encerra-se, em germe, todo o conflito dos tempos atuais [...] se revela a incompatibilidade entre a produção social e a apropriação capitalista” (Engels, 1977, p.47). As citações de O Capital (Marx, 2001) são de livre tradução do autor.