ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE

Gestão Pública na Zona do Não Ser: Políticas Públicas, Igualdade Racial e Administração Pública no Brasil

Public Management in yhe Non-Being Area: Public Policies, Racial Equality and Public Administration in Brazil

Gestión Pública en la Zona del No Ser: Políticas Públicas, Igualdad Racial y Administración Pública en Brasil

Tatiana Dias Silva

Doutoranda. Universidade de Brasília. Programa de Pós-Graduação em Administração.

http://lattes.cnpq.br/2624066870791262

https://orcid.org/0000-0001-5664-6140

tatiana.silva@ig.com.br

 


Resumo: Este artigo procura analisar a inserção do tema racial na recente agenda governamental brasileira, a partir da perspectiva da matriz de dominação apresentada por Patrícia Hill Collins. Para esta autora, o enfrentamento da opressão em busca do empoderamento passa por conhecer as fontes e o modus operandi do poder. Para tanto, apresenta matriz de dominação no contexto norte-americano, com domínios de poder estrutural, disciplinar, hegemônico e interpessoal. Com base nesse modelo, serão considerados mecanismos de reprodução do racismo e desigualdades no contexto brasileiro como meio para compreender recentes políticas de promoção da igualdade racial, seus limites, avanços e possibilidades. Avalia-se que, embora se tenham avanços no domínio estrutural, esses ainda não parecem ser dotados de robustez suficiente para o enfrentamento da questão, tanto porque são resultados de conflitos e conciliações que alteram seu escopo, como porque os progressos nos domínios disciplinar e hegemônico parecem ainda não ter alcançado o mesmo patamar.

 

Palavras-chave: gestão pública, raça, racismo, políticas públicas

 


Abstract: This article tries to analyze the insertion of the racial issue in the recent Brazilian governmental agenda, from the perspective of the matrix of domination, presented by Patricia Hill Collins. For this author, confronting oppression in search of empowerment, comes from knowing the sources and the modus operandi of power. For that, she presents a matrix of domination in a North American context, with domains of structural, disciplinary, hegemonic and interpersonal power. Based on this model, the mechanisms of reproduction of racism and inequalities in the Brazilian context will be considered as means to comprehend recent policies in order to promote racial equality, their limits, advances, and possibilities. It is assessed that, although progress has been made in the structural domain, it seems they are not sufficiently sturdy yet to address the issue, both, because they are the result of conflicts and conciliations that alter their scope, and because progress in the disciplinary and hegemonic domains does not seem to have reached the same level yet.

 

Keywords: public management, race, racism, public policies

 

 


Resumen: Este artículo busca analizar la inserción del tema racial en la reciente agenda gubernamental brasileña, desde la perspectiva de la matriz de dominación presentada por Patricia Hill Collins. Para esta autora, el enfrentamiento de la opresión en busca del empoderamiento pasa por conocer las fuentes y el modus operandi del poder. Para eso, presenta matriz de dominación en el contexto norteamericano, con dominios de poder estructural, disciplinario, hegemónico e interpersonal. Con base en ese modelo, se considerarán mecanismos de reproducción del racismo y desigualdades en el contexto brasileño como medio para comprender recientes políticas de promoción de la igualdad racial, sus límites, avances y posibilidades. Se evalúa que, aunque se tienen avances en el ámbito estructural, estos todavía no parecen dotados de robustez suficiente para el enfrentamiento de la cuestión, tanto porque son resultados de conflictos y conciliaciones que alteran su alcance, como porque los progresos en los dominios disciplinar y hegemónico no parecen haber alcanzado el mismo nivel.

 

Palabras clave: gestión pública, raza, racismo, políticas públicas.

 

 


Texto completo em português: http://www.apgs.ufv.br

Full text in Portuguese: http://www.apgs.ufv.br


INTRODUÇÃO

Especialmente nas últimas duas décadas, a questão racial passa a conquistar maior espaço na agenda governamental. A criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), em 2003, marca o avanço de políticas públicas de promoção da igualdade racial, em um contexto de embates e limitações. Com efeito, o tema das desigualdades raciais permaneceu por muito tempo não apenas ausente, mas negado por sucessivos governos, sob os auspícios do imaginário de democracia racial, construído e mantido com afinco por políticos, intelectuais e pela sociedade em geral.

As políticas públicas relacionadas ao tema não raro tinham como resultado o agravamento das desigualdades (como a lei de terras de 1850, a política de imigração ou a legislação diferenciada para trabalhadores domésticos) (Bernardino-Costa, 2015; Theodoro, 2008)[i], ou permitiam sua reprodução sob a justificativa de universalismo em um cenário de intenso de racismo institucional.

Um longo processo histórico de mobilização de entidades negras, embates, denúncias de racismo e luta por direitos, foi conquistando maior espaço entre atores nacionais e internacionais da academia, partidos políticos, e da mídia. Essa trajetória possibilitou a participação importante do tema na Constituição Federal de 1988, bem como mobilização expressiva de representantes nacionais na Conferência de Durban (III Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas), em 2001. Os desdobramentos desta conferência intensificaram sobremaneira tanto o debate como a implementação de ações de enfrentamento ao racismo.

Reconhecendo que o racismo no Brasil é um fenômeno estruturante das relações sociais, que atua de modo intensivo, transpassando instituições, cultura e imaginário na produção e reprodução de desigualdades, procura-se analisar, neste artigo, em que medida as ações adotadas para seu enfrentamento têm conseguido, ainda que em termos de seus propósitos e formulação, enfrentar esse cenário. Para tanto, recorre-se ao conceito de matriz de dominação apresentado por Patrícia Hill Collins. Para a autora, o enfrentamento da opressão em busca do empoderamento perpassa o conhecimento das fontes e o modus operandi do poder. Por isso, apresenta a matriz de dominação no contexto norte-americano, com seus domínios estrutural, disciplinar, hegemônico e interpessoal. Essa matriz será utilizada tanto para analisar os mecanismos de reprodução do racismo e das desigualdades no contexto brasileiro, como para tentar compreender como recentes políticas de promoção da igualdade racial avançam nessas dimensões, considerando seus limites e possibilidades. O pressuposto é que tenha se avançado mais nas perspectivas estruturais e menos nos domínios disciplinar e hegemônico, o que tem limitado o aprofundamento das medidas implementadas.

Para esta análise, foram selecionados estudos sobre políticas públicas e legislação sobre igualdade racial no país a partir dos anos 2000. A escolha das principais iniciativas governamentais e legislativas para o tema no Brasil, em período recente, procura apresentar um panorama que conecte sua relação em cada domínio de poder proposto por Collins (2000), bem como informe as limitações apontadas em suas análises e críticas para avanço das políticas neste campo.

Com esse esforço, espera-se contribuir com a gestão de políticas desse gênero, identificando desafios relevantes para sua implementação. Por sua vez, intenta-se agregar contribuição teórica sobre políticas públicas e questões raciais que extrapolem as ações afirmativas e dirijam-se à sua inserção na administração pública de um modo ainda mais amplo.

Para cumprir este propósito, além desta breve introdução, o texto conta ainda com mais quatro sessões. Na seguinte, o racismo e seu enfrentamento serão analisados sob a perspectiva da colonialidade de poder. Em seguida, apresenta-se o referencial da matriz de dominação, para depois identificar os domínios de poder e como o quadro de políticas recentes de igualdade racial no Brasil tem sido implementado. Por fim, serão compartilhadas considerações finais acerca do tema aqui discutido.

 

SOBRE RACISMO E COLONIALIDADE DE PODER

O racismo é, neste artigo, compreendido como elemento estruturante das desigualdades sociais no caso brasileiro. Apesar de negligenciada na esfera governamental, a questão racial sempre foi um tema importante nas ciências sociais e humanas brasileiras, tomando-se como referência o século passado. A inserção do negro na sociedade pós-abolição foi debatida, em diferentes perspectivas, na sociologia, na história, e na literatura. Enquanto para muitas correntes, o “problema” do negro era biológico, calcado na eugenia, para outros segmentos, o “problema” do negro, cuja presença caracterizaria a sociedade brasileira como primitiva, iria se diluir à medida que crescia a miscigenação, ou que a vinda de trabalhadores europeus era estimulada. Já para outros intelectuais, o ranço da escravidão haveria de se dissipar com a emergência dos valores modernos, a prevalecer junto aos processos de urbanização e industrialização. Mais recentemente, um novo conjunto de reflexões reconhecia a persistência do racismo, podendo identificar seus efeitos em indicadores desiguais para populações raciais diferenciadas. Desse modo, por exemplo, na área da sociologia, o debate sobre relações raciais, conquanto não raro eivado de pressupostos, critérios e propósitos questionáveis, produziu inúmeros trabalhos e linhas de pesquisa relevantes, basilares da disciplina em perspectiva nacional (Guerreiro-Ramos, 1957; Moura, 1972; Osório, 2008).

De fato, mais do que um elemento importante, o racismo teve papel estruturador da formação nacional, seja no mercado de trabalho, na educação, na cultura, ou acesso aos direitos, em geral (Theodoro, 2008). Permeando não apenas as instituições, mas o imaginário social, práticas e costumes, esse domínio total pode ser compreendido pelo conceito de colonialidade de poder, que refere-se a uma estrutura social que preserva uma relação de poder entre grupos considerados superiores, ilustrados, modernos e outros, bárbaros, aos quais precisam ser levados conhecimento e civilização. Essa relação não só se restringiu apenas à dinâmica colônia e metrópole, mas também estruturou internamente as sociedades ao subalternizar grupos por meios de suas diferenças de gênero, raça, origem.

Esse debate, nesses termos, pode ter origem atribuída a partir dos estudos decoloniais, corrente que resulta da opção de uma crítica ao eurocentrismo, formada a partir de vozes subalternas centradas, especialmente na América Latina. Contando como expoentes como Walter Mignolo, Enrique Dussel, Aníbal Quijano e Ramón Grosfóguel, essa corrente se constituiu a partir do final dos anos 1990, com crescente influência nas ciências socais da região (Ballestrin, 2013). No entanto, seus teóricos argumentam que a decolonialidade não é datada nem delimitada, é antes um movimento de resistência que é parte constituinte da própria modernidade e junto com ela se inscreve.

Diante desse entendimento, a decolonialidade pode ser vista como um projeto e uma atitude (Maldonado-Torres, 2016) que busca enfrentar uma estrutura social fundada na colonialidade do poder e em uma concepção de modernidade racialmente determinada. Segundo Bernardino-Costa e Grosfoguel (2016), na regência da colonialidade do poder, o conceito de raça e de racismo são estruturantes das relações entre conquistadores e conquistados, que perpassou não apenas o controle do trabalho, mas também do Estado e a produção de conhecimento. Considerar o outro como atrasado concedeu à Europa o sentido de modernidade e centralidade, que norteou a política e a produção de conhecimento ao longo do tempo. Conforme destaca Maldonado-Torres (2016), a modernidade centra-se não apenas na linha divisória entre religião e secularidade, mas também na linha moderno/colonial, o que acaba relegando parte do conhecimento e dos sujeitos à situação de zona do não ser.[ii]

No pensamento moderno/colonial, verifica-se a concentração do cânone do conhecimento mundial no pensamento da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. Com efeito, um privilégio epistêmico calcado em um discurso de universalidade. Baseado em realidades “provincianas”, com manto de universalidade, esse conhecimento exclui tanto o mundo não ocidental, tanto quanto aparta, dentro e fora do mundo ocidental, as reflexões de mulheres e negros, por exemplo. A base dessa supremacia estaria, segundo Grosfoguel (2016, p. 7) fundada nos quatro genocídios/epistemicídios do século XVI:

1. contra os muçulmanos e judeus na conquista de Al-Andalus, em nome da “pureza do sangue”; 2. contra os povos indígenas do continente americano, primeiro, e, depois, contra os aborígenes na Ásia; 3. contra africanos aprisionados em seu território e, posteriormente, escravizados no continente americano; e 4. contra as mulheres que praticavam e transmitiam o conhecimento indo-europeu na Europa, que foram queimadas vivas sob a acusação de serem bruxas.

 

Diante desse contexto de hierarquias, o projeto decolonial propõe uma discussão pluricêntrica, que traga diferentes pontos de contestação ao projeto de modernidade eurocêntrico (transmodernidade) e rompa as barreiras da colonialidade do poder. Esse modo de dominação não ficou circunscrito às relações colônia e metrópole, mas subsistiu após as independências, não apenas na relação entre nações, mas especialmente nas relações internas aos contextos nacionais, com projetos de colonização interna em hierarquias sociais baseadas na raça, no gênero e na origem. O pensamento de fronteira proposto é produzido nos limites entre os colonizadores e os subalternos, dando a esses, na relação de colonialidade de poder, não apenas voz a partir do seu lugar social, mas reconhecendo seu lugar epistêmico de produção de conhecimento engajado na mudança social (Bernardino-Costa & Grosfoguel, 2016).

 

A inferiorização dos conhecimentos produzidos por homens e mulheres de todo o planeta (incluindo as mulheres ocidentais) tem dotado os homens ocidentais do privilégio epistêmico de definir o que é verdade, o que é a realidade e o que é melhor para os demais. Essa legitimidade e esse monopólio do conhecimento dos homens ocidentais tem gerado estruturas e instituições que produzem o racismo/sexismo epistêmico, desqualificando outros conhecimentos e outras vozes críticas frente aos projetos imperiais/coloniais/patriarcais que regem o sistema-mundo. (Grosfoguel, 2016, p. 1).

 

Para suportar seu argumento, Grosfoguel (2016) se contrapõe ao dualismo ontológico de Descartes. Para ele, Descartes reconhecia a possibilidade de um conhecimento neutro e universal, uma vez que a mente, entendida como dissociada do corpo, poderia, isenta de paixões, se comparar ao “olho de Deus”. Outra base do pensamento cartesiano é a possibilidade de o homem vencer a dúvida e encontrar a verdade por meio de questionamento interno (solipsismo). Grosfoguel (2016) questiona então em que se assenta o pensamento cartesiano ao se reconhecer que a mente humana não é dissociada do corpo, e assim produz conhecimento a partir de um lugar social, e que a produção do conhecimento é dialógica, em contato com os outros e não isolado? Rompendo-se esses pressupostos, estaria se deparando com uma produção de conhecimento “monológica, deslocada de lugar e antissocial” (Grosfoguel, 2016, p. 5).

Citando Dussel, Grosfoguel (2016) afirma que esse conhecimento alardeado como universal está autorizado por um processo de colonização que coloca a Europa no centro do mundo a partir de 1492 e, em consequência, como centro da produção de conhecimento. O popular “penso logo existo” só se sustenta com a ideia de “conquisto, logo existo” e “extermino, logo existo”.

Desse modo, o projeto da decolonialidade apresenta vigorosa crítica a uma visão de mundo eurocêntrica, que não se dissipou com os processos de descolonização. Pelo contrário, as hierarquias sociais baseadas em uma identidade em oposição ao outro inferiorizado, construídas na modernidade, além de permanecerem, se incorporaram como elemento estruturante das sociedades coloniais e metropolitanas. O outro subalterno assume não apenas posição inferiorizada geograficamente, mas também socialmente, por distinções de raça, sexo, origem, entre outras, no interior de cada sociedade. A posição de colonialidade do poder subsiste na presunção de inferioridade do outro, não apenas nas relações políticas e sociais explícitas, mas primordialmente no silenciamento da sua condição de “ser” e de produção de conhecimento – epistemicídio, nas palavras de Boaventura de Sousa Santos (Bernardino-Costa, 2015).

Considera-se o racismo como componente fundamental da colonialidade de poder no contexto brasileiro, se mostrando de forma explícita ou disfarçada, direta ou indireta, nas relações sociais, nas estruturas do estado, nas instituições, bem como destituindo o indivíduo negro das mesmas características de humanidade, deslegitimando-o como produtor de conhecimento, naturalizando sua posição de subalternização e minando seu enfrentamento.

No projeto decolonial, a crítica a esse estado de coisas se faz na fronteira entre colonizadores e subalternos, vista não como um espaço essencialista dos excluídos, mas reconhecendo esta posição em diálogo com a modernidade colonial, a partir de perspectivas subalternas como espaço privilegiado de construção de conhecimento. É uma abordagem crítica social, mas também outra perspectiva epistemológica que reconhece e não despreza essa posição. Em outras palavras, o pensamento de fronteira é a resposta epistêmica dos subalternos ao projeto eurocêntrico da modernidade (Grosfoguel, 2009, p. 6).

Este texto empenha-se, então, considerando essa perspectiva de fronteira, a identificar em que medida o quadro de políticas públicas voltadas à igualdade racial implementadas no país se apresenta para enfrentar essa estrutura de poder e estabelecer um diálogo a partir dessas fronteiras. Para tanto, será considerado o referencial de matriz de dominação apresentado por Collins, uma das principais autoras do feminismo negro.

 

MATRIZ DE DOMINAÇÃO E RACISMO NO BRASIL

O feminismo negro, de origem norte-americana, se consolida na segunda metade do século XX, com a emergência de uma literatura multidisciplinar e um debate autônomo tanto em relação ao feminismo de maioria branca como ao movimento negro (Collins, 2016). Como relata Hooks (1981), em seu primeiro livro sobre feminismo negro, havia um incômodo que a perseguia ao tentar participar dos movimentos feministas e dos movimentos de combate ao racismo. Nos últimos, a discussão de gênero não tinha espaço; nos primeiros, a questão racial não era vista como importante. A visão dos dois movimentos não comportava a problemática vivenciada pela mulher negra norte-americana.

Collins (2000, p. 3), uma das principais autoras dessa abordagem, apresenta uma pergunta fundamental: “por que as mulheres afro-americanas e suas ideias não são conhecidas nem vistas como críveis?” Para ela, a opressão pela qual passam as mulheres negras têm três dimensões: a dimensão econômica, que refere-se à política de relegar às negras funções subalternas, em um gueto das ocupações de serviço pessoal; a dimensão política, que refere-se ao usufruto desigual em relação aos direitos políticos, educação de qualidade e outros bens e direitos; e por fim, a dimensão ideológica, que trata de como foi construído um imaginário depreciativo e estereotipado da mulher negra, tão imbricado na sociedade que toma aspectos de naturalização e dificulta questionamentos.

Diante de tais questionamentos, o pensamento feminista negro (Black Feminist Thought – BFT) é posicionado como teoria social crítica ao buscar compreender os mecanismos de opressão para enfrentá-los. O feminismo negro deriva, por um lado, da segregação racial, que possibilitou a reunião de uma resistência intelectual com base em valores africanos, criando um ethos próprio da comunidade negra. Outra fonte, por outro lado, trata-se de uma posição “inserida” (outsiders within) nas comunidades brancas como trabalhadoras domésticas e em posições subalternas, que as permitia desmitificar o racismo, identificar contradições nas sociedades brancas e entre os papéis das mulheres negras e brancas e estabelecer vínculos diferentes com os brancos em relação ao ofertado aos homens negros (Collins, 2000, 2016).

O BFT permite ressignificar leituras sobre a posição da mulher negra norte-americana, a partir das dimensões de gênero, classe e raça. Nesse contexto, são consideradas intelectuais não apenas as mulheres negras letradas, mas todas aquelas capazes de articular um discurso crítico sobre seu papel na sociedade. No componente epistemológico, destaca-se que o conhecimento é gerado a partir do local de fala e da busca por superar injustiças. Esta corrente também é uma teoria para a ação, que enseja mudança a partir da identificação e compreensão dos mecanismos de opressão das mulheres negras e como eles podem ser enfrentados. Nesse sentido, o BFT propõe um projeto de justiça social mais amplo e, para tanto, procura identificar interseções com outras teorias críticas. Collins (2016) defende que a posição de outsiders within das feministas negras possibilitaria ainda um lugar epistemológico diferenciado, de estrangeiro e de participante.

Assim, no feminismo negro, as opressões levam ao desenvolvimento de um ponto de vista a partir da experiência da mulher negra e formas de ação nesse contexto. O conhecimento é gerado a partir da experiência para intervir na experiência (relação dialógica). Cabe aqui destacar que, a despeito da especificidade da sua nomenclatura, o pensamento feminista negro defende a autonomia sem separatismo; busca apoiar outras lutas por justiça social, caracterizando-se como um movimento humanista, uma vez que reconhece que nenhum grupo será livre se não houver justiça para todos.

Considerando seus fundamentos, o pensamento feminista negro poderia ser compreendido como uma reflexão decolonial, ao romper com o pensamento colonial a partir de uma contestação subalterna que reivindica a justiça social. E que envolve desde a construção de um conhecimento libertário até demandas por mudança social. Com efeito, ambas as abordagens enfrentam um pensamento colonizado, hierarquizado e hegemônico, questionando as instituições por meio de uma visão do lugar do subalterno diante da atual correlação de forças. Reconhecem o jogo de poder e reivindicam posição social e epistemológica multicêntrica e engajada e assim possibilitam mudanças radicais, e não apenas contestações pontuais (e até mesmo funcionais), ao estado atual das coisas.

Afirma Collins (2000) que, para enfrentar a opressão em busca do empoderamento, é necessário conhecer as fontes e o modus operandi do poder. Para tanto, apresenta a matriz de dominação, com seus domínios estrutural, disciplinar, hegemônico, e interpessoal e analisa-a a partir do contexto norte-americano. Além das abordagens sobre poder que se concentram na resistência grupal ou atitudes individuais, a autora apresenta um modo mais estruturado de opressão, que chama de matriz de dominação, em que as interseccionalidades de raça, gênero, origem, sexualidade, classe e a conjugação dos domínios de poder funcionam como arranjos institucionais complexos.

Segundo essa matriz de dominação, há poucas vítimas ou opressores puros no contexto em que variadas perspectivas afetam diferentemente as pessoas em uma sociedade (classe, raça, gênero, origem, sexualidade). Com a conjunção entre os eixos de dominação (raça, gênero, classe, sexualidade e origem) e os domínios de poder (estrutural, interpessoal, disciplinar e hegemônico), é possível analisar de forma mais complexa a realidade do que apenas focar na lógica “opressor e oprimido”.

Whether viewed through the lens of a single system of power, or through that of intersecting oppressions, any particular matrix of domination is organized via four interrelated domains of power. […] Each domain servers a particular purpose. The structural domain organizes oppression, whereas the disciplinary domain manages it. The hegemonic domain justifies oppression, and the interpersonal domain influences everyday lived experience and the individual consciousness that ensues. (Collins, 2000, p. 276)

 

O domínio estrutural diz respeito a como as instituições ainda que independentemente, mas de forma sistêmica, reproduzem um padrão de desigualdades que prejudica mulheres negras. Nesse contexto, as mulheres negras têm buscado alterações legais para garantir direitos, buscando normas que assegurem igualdade formal e material. Ressalta iniciativa atual de frear essas conquistas com o discurso da neutralidade de gênero e raça. Este domínio refere-se ao nível institucional, a como as organizações estão estruturadas para reproduzir o racismo. No contexto norte-americano, Collins (2016) pontua como a política do “separados, mas iguais” serviu para criar instituições diferenciadas em que a segregação de mulheres negras em guetos, escolas com baixo financiamento e regiões com poucos serviços sociais, contribuiu para excluir a população de seus direitos, mesmo sob legislação pretensamente “color-blind”. Mais recentemente, a política do “color-blind” seria ativada para negar a influência do componente racial na produção das desigualdades.

No domínio disciplinar, a autora destaca o papel da supervisão burocrática, tanto para gerenciar as relações de poder dentro das organizações e o papel destacado para as mulheres negras, como para “minar” as políticas voltadas à promoção da igualdade. Destaca o papel das mulheres negras inseridas na burocracia e as possibilidades de mudança que podem empreender. Nesse domínio, uma vez que não se poderia mais apenas excluir os grupos raciais, a autora identifica o papel das burocracias em moldar o comportamento (controlar) os seus integrantes, estabelecendo padrões de ocupação de hierarquias, papéis e formas de acesso às políticas públicas (estigmatização do pobre, rotinas extenuantes como fonte de poder da burocracia). Enquanto o domínio estrutural refere-se às instituições, o domínio disciplinar relaciona-se à sua operação. Nesse contexto, uma via de mudança seria a ocupação de lugares dentro desta burocracia. Este olhar de dentro permite ressignificar muitas normas e sistemas e promover, em sua medida, mudanças em torno de uma proposta mais justa.

Para aprofundar a análise empreendida por Collins (2000) sobre este domínio, insere-se a perspectiva da burocracia representativa. Conforme essa abordagem, a representatividade importa de duas formas. No sentido da representatividade passiva, a representação igualitária (considerando a distribuição populacional) de todos os grupos sociais possibilita mais legitimidade à burocracia. Esta, ainda que não legítima pelo voto, o seria então pela possibilidade de representar a população que a suporta. Ademais, vai ao encontro do sentido de justiça social, ao criar condições de igualdade de oportunidades para os diversos grupos sociais alcançarem as mais diferentes posições sociais, ainda mais as posições públicas. Além disso, um corpo burocrático mais diverso tenderia a angariar maior empatia da parte dos cidadãos, colaborando para a melhor execução de políticas públicas, especialmente aquelas que exigem algum nível de participação para sua execução. No entanto, para fins de efetividade das políticas públicas, o sentido mais importante na esfera da representatividade talvez seja a ativa, com a intervenção da burocracia na implementação de políticas para os grupos sociais representados (Kennedy, 2013). A literatura sobre o tema concentra-se na forma como a representação ativa vai atuar para conceder benefícios ou tratamento diferenciado aos grupos de identificação do burocrata, especialmente no nível de execução das políticas, o que é em muitas vezes restrito pelas amarras burocráticas e pelos controles disciplinares aplicados aos agentes públicos (Watkins-Hayes, 2011).

No entanto, a participação mais relevante está no nível de formulação das políticas públicas. A possibilidade de um corpo burocrático de alto nível com representação racial significativa tem maior potencial de mobilizar essa temática na formulação de políticas e programas governamentais. Seja identificando deficit raciais como problemas relevantes para a agenda governamental, seja modelando alternativas de políticas que comportem esse tema, na fase pré-agenda, bem como na definição das diretrizes das políticas públicas, a possibilidade de criar uma tensão é fundamental.

O domínio hegemônico do poder refere-se à ideologia, cultura e consciência, que procura justificar as práticas dos domínios precedentes, por meio de visões compartilhadas em escolas, religiões, famílias, universidades e outros espaços de reprodução social. Neste domínio, busca-se justificar os domínios estrutural e disciplinar. Funciona como uma conexão entre as instituições (domínio estrutural), práticas organizacionais (domínio disciplinar) e interação social (domínio interpessoal). Para seu enfrentamento, é necessário se contrapor a essas ideologias, mas também oferecer alternativas. Nesse domínio, empoderamento significa tanto a liberdade para pensar livremente, como para criar livremente outras racionalidades. Por fim, no domínio interpessoal, estão as práticas rotineiras e cotidianas de relacionamento. Trata-se do nível micro da organização social, em que também múltiplas estratégias individuais de resistência são forjadas.

Ainda que elaborada no contexto norte-americano e voltada para o empoderamento das mulheres negras, a matriz de dominação constitui amplo quadro explicativo dos mecanismos de dominação de raça e gênero e outros eixos de subordinação. Como o próprio BFT se propõe a ser projeto de justiça social ampla, procurou-se utilizar esse framework para analisar as opressões raciais e medidas para seu enfrentamento no quadro das políticas públicas brasileiras recentes. Por essa razão, a seguir, serão detalhados como essas diferentes dimensões podem ser consideradas no quadro de racismo no contexto brasileiro. Tendo como foco o quadro das políticas públicas e ação governamental, a dimensão interpessoal não será objeto de análise.

 

POLÍTICAS PÚBLICAS E PROMOÇÃO DA IGUALDADE NO BRASIL: UM DIÁLOGO COM OS DOMÍNIOS DE PODER

Antecedentes: a questão racial no Brasil e atuação governamental

No Brasil, nas últimas décadas, o problema das desigualdades raciais tem conquistado maior espaço na agenda governamental e no debate público. A despeito da negação sistemática da questão racial no país, as últimas décadas testemunharam o fortalecimento de coalização capitaneada pelo ativismo histórico do movimento negro, que conquistou, ao longo do tempo, aliados importantes no meio acadêmico e político, nacional e internacional (Silva, 2008). Diferentes elementos que caracterizam os problemas, a dinâmica da política e as alternativas dispostas possibilitaram a assunção das desigualdades raciais à categoria de problema susceptível de atenção e de ação governamental (Kingdon, 2011).

Nesse cenário, além de eventos foco, como a Conferência de Durban, realizada em 2001, seus antecedentes e desdobramentos, a mobilização política de determinados segmentos sociais e a demonstração estatística das desigualdades raciais em dados populacionais e registros administrativos colaboraram para consolidar e legitimar o discurso voltado para promoção da igualdade racial. Diversos pesquisadores contribuíram para crescente institucionalização, não sem embates e limitações, do recorte racial no quadro das estatísticas nacionais, não apenas na coleta, mas fundamentalmente na análise e provisão de informações para as políticas públicas (Ethos, 2010; Ipea et al., 2011; Paixão & Rossetto, 2012; Senkevics, Machado, & Oliveira, 2016).

Em diferentes esferas do poder público, foram desenvolvidas políticas e programas voltados à redução das desigualdades experimentadas entre brancos e negros. Dentre eles, podem-se citar: programas de acesso ao ensino superior (cotas, bônus e bolsas para ingresso na universidade, cursos preparatórios); programas de permanência e apoio a estudantes negros; programas para acesso ao serviço público (bolsas, cursos e cotas em concursos); promoção de educação antirracista (formação de professores, alterações na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, programa de livros didáticos); programas de saúde da população negra; acesso diferenciado a recursos públicos (editais para eventos e projetos); mudanças em contratações de recursos públicos (licitações, empréstimos); fomento à pesquisa sobre relações raciais (Jaccoud & Beghin, 2002; Osorio, 2006; Ipea, 2013).

Com efeito, por muito tempo a postura do governo brasileiro em relação às desigualdades raciais e ao racismo foi a omissão e o não reconhecimento do problema. Apenas em 1951, foi promulgada a primeira legislação de combate ao racismo, ainda assim em virtude de um episódio de discriminação contra uma artista estrangeira[iii]. Quando não executando medidas com caráter discriminatório explícito (Lei de terras de 1850, política de imigração, negação dos direitos das trabalhadoras domésticas, etc.), o estado brasileiro reafirmava a posição de que o país vivenciava uma verdadeira democracia racial, o que tornava qualquer iniciativa de análise das desigualdades raciais, segundo esta concepção, totalmente supérflua (BERNARDINO-COSTA, 2015; SILVA, 2008; THEODORO, 2008).

Cabe destacar, todavia, que a negação das desigualdades raciais e a apologia ao mito da democracia racial no país não foi privativo dos governos e correntes intelectuais. Esse imaginário coletivo era formado e cultivado por diversas instâncias sociais, perdurando, ainda que de forma mais combalida, até os dias atuais. A prontidão em negar o comportamento racista e o racismo estrutural, relegando seus efeitos apenas às desigualdades sociais, é o recurso para tornar obscuro o efeito do racismo sobre as desigualdades presentes.

Ainda assim, nas últimas duas décadas, notadamente a partir dos anos 2000, houve significativa mudança nesse estado de coisas. Diante de vários embates, o problema das desigualdades raciais passou a ser reconhecido pelo governo brasileiro e considerado em conferências nacionais e internacionais. Evidentemente, a ascensão desse problema à agenda pública e governamental não se deu de forma gratuita. A luta dos movimentos sociais negros, a denúncia interna e externa das desigualdades raciais, as conquistas legislativas, aliadas ao processo de democratização, permitiu que o tema tivesse maior incidência na Constituição Federal de 1988 e nas políticas que se seguiram[iv]. Se já no governo Fernando Henrique Cardoso foram estabelecidos o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) de Valorização da População Negra no Ministério da Justiça (em decorrência da Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo pela Cidadania e a Vida em 1995) e o Plano Nacional de Ações Afirmativas (PNAA, Decreto n. 4.228, 2002), este com pouca efetividade além da ação afirmativa encampada pelo Ministério das Relações Exteriores (Bolsa-prêmio de vocação para a diplomacia), no governo Lula o tema ganhou outro patamar ao ser criado um órgão específico para seu tratamento, em nível federal (Seppir). Com efeito, essa conquista também foi eivada de dificuldades institucionais que permearam desde a criação tardia da Seppir (Ipea, 2009), sua aglutinação com outros órgãos no governo Dilma, até sua instabilidade institucional no governo Temer (Lei nº 13.341, 2016; Medida Provisória n. 768, 2017).

Uma série de iniciativas caracterizaram a política de igualdade racial nos últimos anos: sua difusão subnacional, criação de ações afirmativas nas universidades e concursos públicos, medidas para implementação de uma educação antirracista, direitos fundiários das populações quilombolas, reconhecimento das comunidades tradicionais, entre elas comunidades de religião de matriz africana, reconhecidos como sujeitos de direitos para políticas públicas.

No entanto, considerando a complexa dominação de caráter racial no país, especialmente a partir do referencial dos domínios de poder e sua dinâmica, questiona-se de que modo essas políticas têm promovido o enfrentamento a esse contexto de desigualdades.

Como afirma Collins (2000), é preciso conhecer os mecanismos de poder para desenvolver ações efetivas para seu enfrentamento e empoderamento da população negra. A partir do referencial trazido por esta autora e da matriz de dominação apresentada, será analisado como o racismo tem exercido poder e como tem sido combatido no contexto das políticas públicas de promoção da igualdade racial no Brasil[v].

 

Domínio estrutural

O domínio estrutural refere-se aos mecanismos, diretos e indiretos, que, com continuidade, produzem desigualdade. Com base no conceito de racismo estrutural, refere-se à incapacidade das instituições em gerar resultados independentemente das características raciais dos envolvidos, o que pode ser agravado pela condição de gênero e classe, entre outras. Essa situação consiste em uma forma de poder (e opressão) à medida que coloca a população negra sempre em condição de desvantagem. Esse quadro torna-se mais agudo uma vez que permanece escondido sob o manto de ações governamentais consideradas neutras ou universais.

Em sua forma direta, a discriminação relaciona-se a mecanismos de segregação e discriminação explícita, como exigência de determinados perfis em processos seletivos ou tratamento ofensivo, mais frequentes no nível do domínio interpessoal dadas as sanções legais e sociais previstas. Em sua forma indireta, é abundante de exemplos e evidências. Uma corrente consistente de estudos em relações raciais tem apresentado dados estatísticos que comprovam não apenas a maior participação como persistência de pretos e pardos nos estratos inferiores em termos de condições de vida (Osorio, 2008; Ethos, 2010; Paixão, Rosseto, Montovanele, & Carvano, 2010). Ademais, mesmo com controles estatísticos que isolam os efeitos atribuídos às diferenças socioeconômicas na obtenção de melhores condições de vida (como escolaridade, gênero, setor de atuação), permanece uma diferenciação, entre brancos e negros, não explicada pelas demais variáveis (Ipea, 2005).

Diante desse quadro de desigualdades amplamente divulgado, algumas medidas fundamentais têm sido implementadas nos últimos anos. Análise realizada nos Planos Plurianuais do governo federal (PPA) de 2004-2007 e 2008-2011 identificou alguns tipos de programas governamentais relacionados ao tema racial (Silva, Cardoso, Silva, & Lobo, 2011, P. 10).

Programas/ações universais sensíveis à promoção da igualdade racial: Desenvolvem atividades universais, porém incorporam iniciativas que incluem a temática racial, em diferentes níveis e profundidade, quer no conteúdo de projetos, em linhas preferenciais em editais públicos ou na sistemática de coleta e acompanhamento de dados desagregados, por exemplo.

Programas/ações universais com projetos específicos de promoção da igualdade racial: Desenvolvem atividades específicas de combate à desigualdade racial, com recursos destacados, porém, por estarem no âmbito de uma determinada ação, sem discriminação, não é possível identificá-los nos instrumentos de planejamento e orçamento.

Programas/ações específicos de promoção da igualdade racial: Desenvolvem atividades específicas de combate à desigualdade racial ou voltadas especialmente para a população negra, com recursos destacados nos instrumentos de planejamento e orçamento.

 

No entanto, analisando os programas do PPA em 2008, apenas 40% dos programas sociais afirmavam considerar o tema racial (excluindo-se aqueles que apenas fazem referência vaga), em alguns dos níveis de implementação relacionados acima (Silva et al., 2011). Ademais, o orçamento da Seppir está sistematicamente entre os menores entre os ministérios, a despeito de o enfrentamento às desigualdades raciais figurar como objetivo estratégico do governo neste documento no período analisado (2004-2011). Ainda que a posição institucional da Seppir fosse de articulação e que a implementação de políticas públicas específicas ou universais de que a população negra fosse beneficiária estivesse a cargo de diferentes pastas, o orçamento da Seppir ainda se constituía em óbice para expansão das atividades.

Dentro de ações específicas que não envolvem recursos diretos, há que se destacar a política de ações afirmativas nas universidades e no serviço público, ambas inicialmente adotadas de forma autônoma por instituições de ensino superior, estados e municípios, passaram por um processo de difusão por uma década até consolidarem-se em lei (Lei 12.711, 2012; Lei 12.990, 2014). Nessa linha, deve-se destacar políticas como o Programa Universidade para Todos (PROUNI), que consideram o recorte racial para seleção dos beneficiários, em diferentes níveis. Cabe ressaltar ainda que estas políticas afirmativas, todavia, consideram, em sua maioria, o recorte racial subordinado ou conjugado como critério social (renda ou origem escolar). A exceção é a legislação para reserva de vagas para ingresso em cargos públicos.

No âmbito legislativo, além do Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288, 2010), normativos como a regulamentação da titulação das terras quilombolas (Decreto n. 4.887, 2003) trouxeram novo arcabouço para a defesa dos direitos da população negra. Pode-se ainda listar, sem pretensões exaustivas, os inúmeros espaços institucionais criados ou aprimorados para apoiar políticas públicas para população negra, para elaboração de denúncias ou monitoramento e acompanhamento dos resultados de ações governamentais, como os conselhos e as conferências de Políticas de Igualdade Racial.

Uma ação de organização burocrática essencial tem sido a ampliação da coleta e tratamento da informação racial nos registros administrativos. Se recentemente novas bases incorporaram o dado racial (ex. Plataforma Lattes), aperfeiçoaram a coleta ou adicionaram esse dado na publicização de suas informações, ainda se verifica um cenário de subnotificação desta informação, questionamentos ou mesmo descaso em seu tratamento (Senkevics, Machado, & Oliveira, 2016; Paixão & Rossetto, 2012). Identificar como os diferentes grupos raciais ou de gênero têm acessado políticas públicas, ou vivenciado deficit em variados campos sociais, é essencial para correção da ação governamental, bem como para definição, priorização e formulação de políticas públicas.  São, sobretudo, uma maneira de desvendar os meios e resultados de opressão no domínio estrutural.

Ainda no âmbito das políticas executadas diretamente pelo governo federal, é preciso ressaltar a dificuldade para seu monitoramento e acompanhamento. Especialmente as políticas não específicas de igualdade racial não dispõem de mecanismos de transparência em seus instrumentos de planejamento e orçamento, que permitam uma avaliação mais ampla de suas atividades. Embora dispositivos legais (Estatuto da Igualdade Racial e Lei de Diretrizes Orçamentárias) façam a previsão de publicização dos resultados dessas iniciativas, as medidas tomadas, como a Agenda Transversal e relatórios de avaliação do Ministério do Planejamento ou ainda o Plano Orçamentário (PO), inovação no sistema de planejamento, não alcançaram ainda os objetivos previstos, respectivamente por sua superficialidade ou por sua baixa adesão (Ipea, 2015; Silva et al, 2011).

Este rol de iniciativas governamentais configura amplo leque de políticas e programas e iniciativas voltados à redução das desigualdades raciais, atuando no domínio estrutural, buscando reversão dos efeitos do racismo. Cabe salientar que todas essas medidas foram resultado de disputas, muitas vezes intensas, para alteração da configuração institucional das políticas públicas. O grande embate em torno das ações afirmativas nas universidades promoveu, entre outros resultados, uma configuração final que privilegiou classe a raça. Nas cotas no serviço público, além das contestações judiciais e denúncias de fraude, há que se considerar que restaram ausentes os debates em torno dos cargos em comissão e terceirizados, que constituem expressiva parcela da força de trabalho na burocracia governamental. No longo debate sobre o Estatuto da Igualdade Racial, diversas propostas ficaram à margem, como as cotas parlamentares e no mercado de trabalho, enquanto outras tiveram seu caráter vinculante deveras maculado (Silva, 2012).

Ou seja, ainda que se identifique expressivo conjunto de medidas governamentais, concessões foram realizadas ao longo do processo. Ainda considerando o desenho resultante, não se pode falar em efetividade plena de parte delas, conforme corroboram as análises citadas. Com efeito, a sua existência, ainda que possibilite relevantes avanços, não garante plena e adequada implementação. O enfrentamento aos outros domínios da matriz de dominação, especialmente o disciplinar e hegemônico são fundamentais para implementação ou melhor desenho das medidas tão arduamente conquistadas.

 

Domínio Disciplinar

Neste domínio, estão as práticas organizacionais que tanto reforçam os papéis e hierarquias, como definem os interesses, problemas relevantes e a maneira como as políticas, normas e determinações do domínio estrutural serão, na prática, implementados. No discurso de formulação e implementação de políticas de igualdade racial, alguns elementos se apresentam de forma recorrente: burocratas “sensíveis” ao tema e as dificuldades de aceitação dessa agenda (Reinach, 2013). Collins (2000) aponta os quadros de representatividade e de gestão das políticas públicas como bem intricados. Tanto o espaço que o negro ocupa na burocracia, como o modo como a burocracia percebe e se posiciona em relação à temática racial podem configurar esse domínio que, não raro, afeta a condução das medidas conquistadas, seus processos de formulação ou mesmo impede a entrada de determinadas questões na agenda governamental. Assim, as abordagens de burocracia representativa, ativa e passiva, são complementares a essa análise.

No Brasil em 2012, os negros eram 47,4% dos ocupados no setor público, entre funcionários, empregados públicos e militares. No entanto, a participação dos negros é menor quando se considera apenas aqueles ocupados no nível federal (39,9%). Entre os ocupados no setor público, 25,8% dos homens brancos está no nível federal, enquanto apenas 7,5% das mulheres negras trabalham nesse nível. Ainda no setor público, é importante considerar as diferenças de renda, em que mulheres negras alcançam apenas cerca de 43% da renda de homens brancos de mesma escolaridade (12 anos ou mais) (Silva & Silva, 2014). É claro que nem todas as pessoas negras que alcancem posição na burocracia governamental terão disposição, interesse ou condições de atuar sobre a questão racial. Por sua vez, esse papel de “empreendedor da política” racial não é restrito aos negros (Kingdon, 2004). No entanto, em uma sociedade que passou mais de um século após a abolição para criar um órgão em nível federal voltado à promoção da igualdade racial não restrito à esfera cultural, a criação de consensos e a institucionalização da política não pode prescindir desses personagens.

A criação da Lei federal n. 12.990 (2014), que estabelece reserva de vagas para negros no serviço público, é um grande marco no enfrentamento desse domínio. Outras legislações dessa natureza já estavam presentes no ordenamento jurídico nacional desde o início dos anos 2000 (Volpe & Silva, 2016), e outras foram desenvolvidas ao longo do debate em torno da legislação federal (ex. Senado Federal) (Ipea, 2015). Especialmente a Lei federal tem enfrentado uma série de contestações, tanto por parte dos não beneficiados no processo, como por parte daqueles que denunciam fraudes (pessoas não negras aprovadas por cotas raciais). Esse embate motivou a recente Orientação Normativa do Ministério do Planejamento n. 3 (2016), instituindo a obrigatoriedade de comissões de verificação da autodeclaração racial.

Além da representatividade burocrática, é necessário destacar os elementos de controle na execução das medidas estruturais de enfrentamento ao racismo. Ao discutir modelos de análise de implementação de políticas públicas, Lima e D’Ascenzi (2013) propõem um modelo híbrido, que congregue abordagens top-down e bottom-up, além de incluir os elementos culturais, cognitivos e ideológicos como variáveis explicativas, que atuam como "link entre o plano e sua apropriação". Neste processo, “as características da estrutura normativa da política pública, as condições dos espaços locais de implementação e as ideias e os valores dos atores executores de forma interdependente influenciam a conformação da trajetória da política pública e seus resultados” (Lima & D’ascenzi, 2013, pp. 108-109). Ou seja, a disputa por políticas e programas no domínio estrutural e eventuais conquistas não neutraliza elementos ideológicos e disciplinares que afetem seu desenvolvimento. Trata-se do que Collins (2000) explicita como “minar” as políticas raciais.

Se a contestação ao tema não impediu a constituição de políticas públicas, pode, em segundo momento, atuar na sua imobilização. Um dos exemplos mais notório é o Decreto 4.228 (2003), que instituiu o Programa Nacional de Ações Afirmativas (PNAA) com previsão de “realização de metas percentuais de participação de afrodescendentes, mulheres e pessoas portadoras de deficiência no preenchimento de cargos em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores – DAS”. O decreto não foi regulamentado, nem mesmo revogado. Estudo empreendido junto a órgãos da Administração Pública Federal, meses após a publicação do referido decreto, identificou que entrevistados de nove entre os 23 ministérios pesquisados não sabiam do que se tratava o PNAA. Mesmo entre alguns que afirmaram conhecê-lo, ficou patente o desconhecimento. Em apenas dois ministérios, os representantes consultados confirmaram conhecer o decreto, apesar de não o aplicar. Em alguns órgãos, a implementação do programa ocorreu pontualmente. Somente a iniciativa do Ministério das Relações Exteriores – Programa de Bolsa-Prêmio de vocação para a diplomacia - prosperou (Osório, 2006).

Além de imobilizar a implementação da política, a resistência neste domínio também produz uma falsa imagem de que a política foi constituída e que não será mais preciso intervenções neste campo. Além disso, valendo-se dos marcos legais em vigor, não raro imputa-se aos seus defensores no governo a incapacidade para fazê-la prosperar.

Streeck e Thelen (2005) analisam mudança institucional em economias avançadas, considerando que as alterações nos marcos institucionais não são ocasionadas necessariamente por fatores externos.

Defendem também que alterações internas, pontuais e graduais podem promover mudanças transformativas. Para esta análise, utiliza-se a categoria de regimes sociais, conjunto de regras que estipula o comportamento desejado e bane o indesejável, no qual promotores e tomadores de regras disputam sentidos e interpretações do arcabouço estrutural. Essa concepção permite identificar fontes de mudança institucional relacionadas com o fato de a implementação das regras nunca ser perfeita e que sempre existe um gap entre os padrões ideais de regras e o padrão das ações. Além desse tipo de gap, diferentemente dos casos estudados por estes autores, em que a mudança institucional ocorre em instituições formais consolidadas, no exemplo das políticas de igualdade racial no Brasil, não é incomum identificar instituições formais criadas a partir de estrutura que não contém os elementos mínimos esperados para apresentar resultados compatíveis com os enunciados. Parte importante da explicação dessa dinâmica reside nas ideias e visões sobre a participação do negro na sociedade e sobre o modus operandi das desigualdades raciais no país.

 

Domínio hegemônico

O domínio hegemônico do poder refere-se à ideologia, cultura e consciência, que procura justificar as práticas dos domínios precedentes, por meio de visões compartilhadas em escolas, religiões, famílias, academias e outros espaços de reprodução social. Nesse domínio, estão as justificativas para a conformação dos domínios anteriores, que são incorporadas por todos os segmentos, oprimidos e opressores, em suas variadas configurações interseccionais.

Nesse âmbito, foi feito intenso enfrentamento à categoria da democracia racial, muito bem fundamentada no discurso governamental e no imaginário social por décadas. A imagem de que o país não enfrentava racismo, por não manter relações sociais como as vivenciadas no regime do apartheid, ou na segregação norte-americana, escamoteou um racismo sofisticado, que negava as diferenças ao tempo em que reforçava as desigualdades na segregação espacial, nas hierarquias sociais, enfim, na conjunção do racismo com a opressão de classe, naturalizando o primeiro e criando uma ordem racial para a segunda.

Nessa direção, é emblemático o discurso proferido por Juracy Magalhães, então ministro de Estado das Relações Exteriores e representante do Brasil, durante a XXI Sessão Ordinária da Assembleia Geral (1966) das Nações Unidas:

No campo dos problemas sociais e das relações humanas, o Brasil orgulha-se de ter sido o primeiro país a assinar a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, aprovada pela última sessão da Assembleia Geral. Dentro das fronteiras do Brasil, na realidade, tal documento não seria tão necessário, uma vez que o Brasil é há muito tempo um exemplo proeminente, e eu diria até o primeiro, de uma verdadeira democracia racial, onde muitas raças vivem e trabalham juntas e se mesclam livremente, sem medo ou favores, sem ódio ou discriminação. (Silva, 2008, p. 68).

 

O enfrentamento à concepção de democracia racial também reivindicava uma ressiginificação da presença negra, associada a uma nova postura epistemológica. Para isso, os movimentos sociais negros contribuíram com o debate sobre negritude e valorização da africanidade na história, na cultura, na estética e nos costumes. Esse movimento nos últimos anos, conjugado com a repercussão das políticas de igualdade racial, é apontado como possível motivador para o aumento da autodeclaração da população negra, em todas faixas etárias e de forma mais expressiva que elementos estritamente demográficos (Soares, 2008).

Uma das políticas públicas de enfrentamento ao racismo mais consistentes na disputa neste domínio é a defesa de uma educação escolar antirracista. A referência é para a Lei 10.639 (2003), criada pouco antes da instituição da Seppir, resultado de intensa e longa mobilização do movimento negro pela ressignificação do imaginário social em que a participação do negro na formação nacional era embasada em estereótipos de subalternidade e invisibilidade. O referido dispositivo altera a Lei de diretrizes e bases da educação nacional Lei 9.394 (1996), ao “incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira". Embora muito se tenha realizado, como a elaboração e distribuição de material didático específico e formação de professores, estudos mostram que muitas barreiras se colocam para esse enfrentamento e para consolidação de uma educação antirracista no sistema de ensino (Garcia-Filice, 2013; Jesus & Gomes, 2013).

Segundo essas avaliações, a não implementação ou implementação de caráter restrito da Lei não permite realizar seu objetivo principal, qual seja reverter as visões colonizadas sobre o continente africano e mesmo sobre os seus descendentes no Brasil. Em pesquisa nacional realizada entre 2009 e 2010, a fim de analisar as práticas pedagógicas relativas às relações étnico-raciais em escolas, Jesus e Gomes (2013) identificaram falta de materiais didáticos nas escolas, além de embargos à sua distribuição internamente ou mesmo pouca motivação para uso mais amplo entre professores e alunos. A formação de professores também segue como desafio. Além disso, segundo estes autores, a intolerância religiosa tem produzido conflitos na implementação da lei, provocando até mesmo o cerceamento, por pais ou educadores, da participação de estudantes em atividades com a temática africana ou afro-brasileira. Na avaliação desses pesquisadores, a implementação fragmentada e desarticulada do dispositivo legal tem criado óbices para a alteração das estruturas existentes. Em outras palavras, um dos instrumentos mais importantes para enfrentamento do poder no domínio hegemônico não está imune a ele.

Nesse campo, também se reivindica uma ressignificação da opressão negra, desnaturalizando as múltiplas intersecções. Dessa forma, a denúncia do movimento social negro quanto ao extermínio de jovens negros em proporções alarmantes procura estabelecer relação não apenas com a condição social desses jovens, mas também com sua condição racial. Diferentes estudos ressaltam o papel do componente racial na vitimização dos jovens negros (Cerqueira & Moura, 2013; Waiselfisz, 2014). Contra a ideologia hegemônica da classe como matriz nuclear dos conflitos e das desigualdades, apresenta-se também a raça como elemento estruturante dessas desigualdades também em seu nível mais extremo.

Com efeito, a questão central é que permanece em disputa a aceitação do racismo como estruturante importante das desigualdades e da violência. No debate sobre cotas na universidade, a questão da classe se sobrepôs aos efeitos do racismo na conformação de uma legislação voltada para estudante de escola pública, em que o componente racial opera como uma subcota. Ainda que a constitucionalidade do critério racial tenha sido acatada em recente julgamento na Suprema Corte (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF 186, sobre cotas na Universidade de Brasília), esse enfrentamento no domínio estrutural não elimina as contestações ideológicas ou disciplinares. As fraudes ao sistema de cotas, os processos contra esse sistema ou as decisões em primeira instância contra políticas voltadas à população negra, não deixam dúvida quanto às imbricações desses diferentes domínios para efetividade das políticas de promoção da igualdade racial.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo teve como objetivo analisar políticas públicas de promoção da igualdade racial no âmbito federal, desenvolvidas a partir dos anos 2000, com base em estudos e avaliações secundárias. Esta análise foi desenvolvida sob a perspectiva da matriz de dominação apresentada por Collins (2000). Para esta autora, o combate ao racismo e sexismo é resultado de uma combinação complexa de domínios de poder e eixos de dominação, cuja operação precisa ser compreendida para que seu enfrentamento seja consistente.

Considerando o caráter sistêmico e histórico do racismo, como elemento estruturante das desigualdades raciais em um regime de colonialidade de poder, procurou-se analisar a produção das desigualdades e seu enfrentamento nos domínios estrutural, disciplinar e hegemônico. Almejou-se, considerando essa perspectiva de fronteira, compreender em que medida o quadro de iniciativas implementadas no país tem enfrentado essa estrutura de poder e estabelecer um diálogo a partir dessas fronteiras. Recorreu-se, para tanto, à análise de estudos secundários sobre as principais iniciativas legislativas e de políticas públicas de igualdade racial implementadas nos últimos anos.

Uma breve análise de algumas dessas iniciativas permitiu verificar que, embora tenha-se avançado no domínio estrutural, na criação de leis e programas importantes, estes ainda não  parecem estar dotados de robustez suficiente para o enfrentamento da questão. Por um lado, os embates nos domínios disciplinar e hegemônico parecem ainda não ter alcançado o mesmo patamar de desenvolvimento, estabelecendo óbices para enraizamento e maior efetividade das políticas. Por outro lado, o processo de elaboração das políticas de igualdade racial foi transpassado por intensos conflitos que levou a estratégias conciliatórias, o que permitiu, muitas vezes, estabelecimento de mecanismos estruturais aquém do arcabouço necessário.

Ademais, como sinalizado, a pouca densidade de um sistema de monitoramento e avaliação das políticas públicas não apenas afirmativas, mas inclusive de outras com recorte racial ou transversais, dificultou o acompanhamento, fortalecimento e controle social das iniciativas. Por sua vez, problemas persistentes ainda na coleta e tratamento do recorte racial nos registros administrativos de programas governamentais dificultaram uma avaliação mais ampla sobre seus resultados e impactos para população negra.

O recente debate sobre cotas no serviço público vis a vis uma incipiente discussão sobre burocracia representativa, também oferece avanços no domínio estrutural, com ainda restrita influência disciplinar. Por fim, além do combate aos obstáculos para implementação de uma educação escolar antirracista, há que se buscar o enfrentamento ao racismo no domínio hegemônico, de forma mais consistente em outros campos fundamentais, como a mídia, cultura e esportes.

Importante destacar que, em observância aos propósitos da matriz de dominação, deve-se aprofundar a análise empreendida não apenas incluindo outros elementos de formação dos domínios considerados, mas também com a apreciação do domínio interpessoal e do papel da interseccionalidade de gênero, entre outras, nesse contexto.

Este artigo teve como propósito trazer, ainda que de modo panorâmico, algumas reflexões sobre políticas públicas e iniciativas de enfrentamento do racismo e da desigualdade racial no país. Esse esforço alia-se à denúncia de baixo adensamento sobre o tema racial nas áreas de políticas públicas e administração pública (Conceição, 2009; Rosa, 2014; Silva, 2016) e à tentativa de ampliar e organizar os debates no campo. No entanto, a visão mais panorâmica também pode ser vista como uma das limitações do texto, ao não aprofundar a análise em iniciativas específicas. Por sua vez, espera-se que esta lacuna estimule outros estudos a dedicarem-se ao aprofundamento de iniciativas específicas, em análise com mais detalhamento de suas repercussões nos diferentes domínios.

Por fim, destaca-se que este trabalho procurou contribuir com uma agenda de pesquisa que tanto apresente um leque de ações governamentais a ser exploradas mais sistematicamente, como identifique na análise de Collins (2000) e na perspectiva decolonial caminhos alvissareiros para aprofundamento do tema.

 

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[i]
Theodoro (2008) analisa a formação do mercado de trabalho brasileiro. Identifica que a política de imigração, iniciada antes mesmo da abolição da escravatura, permitiu a segregação, tanto ocupacional como regional, de parcela significativa da população negra em benefício da imigração européia na formação do mercado de trabalho nacional. Por sua vez, a Lei n. 601/1850, conhecida como a Lei de Terras, restringiu o acesso à terra apenas por meio de herança ou compra e venda, em detrimento do reconhecimento de posse que operava na ocasião. Desse modo, no mesmo ano em que se efetivou o fim do tráfico de escravos, a ação governamental criava óbices para que a população liberta e pobre tivesse acesso à propriedade da terra.

[ii]

     Cabe esclarecer, conforme defendem Bernardino-Costa e Grosfoguel (2016), que o projeto decolonial distingue-se do pós-colonial. O segundo foi fundado especialmente nas discussões de descolonização africana e asiática no pós-guerra, localizando-se especialmente nos centros ingleses em que intelectuais de ambos continentes discutiam uma proposta que se contrapusesse ao eurocentrismo. No entanto, segundo os autores, uma vez que a América Latina e seus intelectuais são negligenciados nesse projeto, forma-se uma nova centralidade de pensamento crítico que também hierarquiza o conhecimento.

[iii]

      Lei Afonso Arinos, apresentada em decorrência da repercussão da negativa de hospedagem em hotel paulista de luxo a um artista norte-americana (IPEA, 2009).

[iv]

      Em 1989 e 2007, foram aprovadas leis de combate ao racismo, respectivamente conhecidas como Lei Caó e Lei Paim (Lei no 7.716/1989 e Lei no 9.459/2007). Cabe acrescentar que “o texto constitucional tornou o racismo um crime inafiançável e imprescritível (Art. 5o); reconheceu ainda os territórios quilombolas como bens culturais nacionais (Art. 216) ao mesmo tempo em que admitiu o direito da população remanescente de quilombos à propriedade definitiva das terras que estejam ocupando, “devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” (Art. 68 – Disposições Transitórias) e afirmou a diversidade cultural como um patrimônio comum a ser valorizado e preservado (Art. 215 e 216)” (IPEA, 2009, p. 248.)

[v]

      Jaccoud e Beghin (2002) fazem essa contraposição considerando o preconceito, discriminação direta e indireta com as respectivas políticas de valorização, repressão e ações afirmativas.