Casos para Ensino

(VIM DE LONGE, MAS SOU DAQUI!)

(I CAME BY FAR, BUT I AM HERE!)

TOUYE TE SOTI NAN, MEN MWEN ISIT LA!

Giovana Bueno Correio

Universidade do Vale do Itajai, Brasil

Nilvane Boehn Manthey Correio

Udesc, Brasil

Flavio Ramos Correio

Univali, Brasil

(VIM DE LONGE, MAS SOU DAQUI!)

Administração Pública e Gestão Social, vol. 11, núm. 3, 2019

Universidade Federal de Viçosa

Esta obra está bajo una Licencia Creative Commons Atribución-NoComercial-SinDerivar 3.0 Internacional.

Recepção: 08 Março 2017

Aprovação: 03 Agosto 2018

Publicado: 01 Julho 2019

Dilèmla (O Dilema)

Caminhando pensativamente pela Avenida Atlântica de Balneário Camboriú, cidade conhecida pelas inúmeras belezas naturais do estado de Santa Catarina (SC), Clara, cabisbaixa, percorre seu trajeto ao trabalho ignorando a beleza do mar a sua frente e o esplendor de um dia lindo de sol que se desdobra. Seu pensamento é um só: “O que fazer? Meu Deus, o que fazer?”

Clara é responsável pela área de Recursos Humanos na Construtora Criati, empresa de médio porte do ramo de construção civil há 15 anos no mercado. A participação da indústria da construção civil no cálculo do produto interno bruto (PIB) de Santa Catarina é representativa e cresceu principalmente após o ano de 2010, gerando necessidade de mão de obra na área, especialmente para as atividades de pedreiro e servente. Nesse cenário, a Criati passava por um período de escassez de mão de obra e a inserção maciça de imigrantes haitianos na região, em 2013, despertou seu interesse para a contratação. Após seis meses da primeira contratação, a empresa possuía 170 funcionários, sendo 28 haitianos. Outras empresas do setor também aderiram à mão de obra dos imigrantes, o que despertou a atenção do Ministério do Trabalho. O que aflige a Criati e as construtoras da região é o fato de que, em visita aos canteiros de obras, os fiscais do Ministério do Trabalho foram incisivos na exigência da comprovação do curso de segurança para todos os funcionários das obras, inclusive os haitianos que ali trabalham. No entanto, o problema se estende pelo fato de os cursos serem em português e aqueles haitianos que não dominam o idioma (a grande maioria, na verdade) não se encontram aptos a obter esse diploma. Logo, sem o curso, não podem permanecer no trabalho.

A solução sugerida pelo Ministério do Trabalho seria a contratação de um tradutor para permanecer na obra, ofertas de cursos de português para os imigrantes ou cartazes com o idioma falado pelos haitianos, no caso, o crioulo. Clara transmitiu esse parecer ao seu chefe, que sem titubear ordenou: “Resolva isso Clara. Eu já estou farto de problemas! Se vire, mande-os embora e contrate somente brasileiros! Não quero mais me incomodar com isso!”

Para Clara, ouvir isso foi como ficar sem chão: “Como decidir pela vida de tantas pessoas?! Preciso encontrar uma solução! Não posso permitir que a demissão dos imigrantes ocorra dessa forma!”, pensou tristemente. Ela estava a par de todos os fatos ocorridos na empresa e do desafio diário de inserir os imigrantes, com sua cultura diferente, seus costumes, suas dificuldades em entender o idioma e de se fazerem entender também. Ao mesmo tempo, ela se sentia comovida com cada relato de vida e com os desafios por eles enfrentados para ali estarem. Era uma decisão difícil a ser tomada, pois ela sabia que seu emprego dependia disso.

Premye Imigran (Primeiros Imigrantes)

Pierre aguarda na sala de recepção da Construtora Criati. Em suas mãos, a documentação exigida para a realização de sua contratação. Embora ainda apreensivo com seu novo trabalho, está satisfeito em tê-lo conseguido, especialmente após as dificuldades encontradas no trajeto percorrido do Haiti ao litoral de Santa Catarina, no Brasil. Lágrimas lhe vêm aos olhos quando lembra como foi difícil a decisão de vir para o Brasil, especialmente por deixar no seu país, dentre outros familiares, a esposa e o filho. A chegada ao Brasil foi complicada, passou por privações, fome e pela exploração de coiotes bolivianos e peruanos, que exigiam dinheiro para a travessia nas fronteiras. Chegando ao Acre não tinha para onde ir, não tinha acolhimento, não havia onde dormir. Ali ouviu falar de um ônibus com destino ao sul do Brasil, nesse momento ele não fazia a menor ideia de como seria. Seus companheiros de viagem lhe disseram que no Sul havia muitas oportunidades de trabalho. Agarrando-se à esperança de dias melhores, ele subiu no ônibus.

“Pierre Bennet”, chama Clara, interrompendo seus pensamentos, convocando-o para a conferência da documentação.

“Bom dia, Pierre!”

“Que palavra estranha, ‘bom dia’, o que significa?”, pensou Pierre, que em resposta esboçou um tímido sorriso. Pierre entregou a documentação a Clara e sentou-se. “Que período difícil!”, pensou ele, que, chegando a Brasiléia, no estado do Acre, ainda teve que esperar um mês para ter o protocolo de entrada no País. Pierre tinha pouco conhecimento do Brasil. Antes de aqui chegar ele havia ouvido falar somente sobre o carnaval e o futebol, além de algumas coisas que aprendeu na escola sobre a Amazônia, mas sobre a economia do país ele tinha pouca informação.

“Você vem da África, Pierre?”, perguntou Clara. Pierre pensou um pouco para compreender a pergunta e formular a resposta pois, apesar de falar fluentemente o inglês, o francês e o crioulo, que é sua língua natal, além de compreender um pouco de espanhol, o português ainda lhe causa estranhamento.

“Non, Haiti”, respondeu Pierre.

“O que fazia no Haiti, no que trabalhava?”

“Engineer... engenero.”

“Entendi, engenheiro”, responde Clara. Pierre faz um sinal de afirmação balançando a cabeça.

Seu diploma de engenheiro civil não tem validade no Brasil, mas Pierre sente-se satisfeito em conseguir o trabalho como servente de pedreiro em pouco tempo desde a chegada ao litoral de Santa Catarina. Pierre sabe que necessita aprender o português e falar fluentemente para que consiga validar seu diploma e voltar a estudar.

“Só assinar aqui, Pierre”, diz Clara, gesticulando e apontando o formulário de contratação. “Está tudo certo. O exame médico admissional está marcado para hoje à tarde, neste papel estão as informações do local”

“Cierto, obrigado!”, diz Pierre, levantando-se e saindo

da sala. Clara o observa e pensa: “Uma pena um engenheiro ter que trabalhar como servente, mas como comprovar a qualificação se o diploma aqui não representa nada e a carteira profissional, por ser expedida no Brasil, está em branco?”. E continua a refletir: “Não me lembro de ter ouvido falar do Haiti... que vergonha, achei que fosse na África… vou ter que pesquisar”. Clara organiza os papéis da contratação e demais documentos em sua mesa enquanto atende o telefone. “Hoje será um longo dia, ainda há muitas contratações a fazer”, reflete.

Jouanjou (Dia a dia)

Nos meses seguintes à contratação de Pierre, outros haitianos ingressaram no quadro de funcionários da construtora. A satisfação com o trabalho realizado por Pierre fez com que o gerente de obras, Ruan, contratasse mais imigrantes haitianos.

Ruan sorridente entra na sala de Clara:

“Boa tarde, Clara! Dia lindo para uma sexta-feira de maio!”

“Boa tarde, Ruan! Dia lindo mesmo, especialmente por ser sexta-feira!”. Clara e Ruan riem. Já trabalham há muito tempo juntos e são amigos de longa data.

“Hoje à tarde o Elinor e o Kesson trarão os documentos para a contratação. Levei-os pela manhã para realizar o exame médico admissional”, relata Ruan, referindo-se aos dois novos funcionários haitianos.

“Sabe, Ruan, ouço tantas coisas, que fico na dúvida... será que estamos acertando nessas contratações?”

“Eu entendo sua preocupação, Clara. Se for pensar no idioma, é muito mais fácil trabalhar com os ‘nossos’ brasileiros. O que pega mesmo é a língua. Nunca pensei que seria tão difícil explicar as coisas mais simples da obra. Por outro lado, eles se esforçam em aprender, são pontuais, não têm faltas e dificilmente pegam atestados médicos para não virem trabalhar.

“Sim, Ruan, porque os trabalhadores, no geral, exageram. Como aquele caso em que o funcionário estava bem em um dia e no outro dia, ele trouxe um atestado para os próximos seis dias! Absurdo!”, comenta Clara sobre um funcionário brasileiro.

“Sim...sem comentários!”, afirma Ruan, e continua: “Olha, Clara...sobre o seu questionamento dessas nossas contratações, praticamente não há o que reclamar, temos seis imigrantes na obra e eles são pontuais, assíduos, asseados, empenhados e dedicados. Eles comentam que, se fosse possível, teriam um segundo emprego para poder ganhar mais. Eles também gostam de estudar. O impressionante é que eles sempre estão sorrindo, têm um bom astral. São muito gratos pelo trabalho, ao menos é o que percebo”

Ruan prosseguiu relatando a Clara suas impressões sobre os haitianos. Ele pôde perceber que tão logo os haitianos chegam na cidade, a primeira coisa que eles procuram comprar é uma bicicleta e com ela vão em busca de uma oportunidade de trabalho. Houve algumas situações na construtora que lhe chamaram a atenção, por exemplo, para os haitianos é tudo ao pé da letra. Se você agenda com eles o trabalho para amanhã até o meio dia, é exatamente até o meio-dia. Não adianta querer que eles fiquem até as 13h ou mesmo liberar mais cedo, se você falou que era até o meio-dia, será até o meio-dia. Outro fato é quando eles precisam ir ao médico ou ao dentista, eles agendam para o final do expediente, bem diferente dos funcionários brasileiros. Já teve casos de funcionários brasileiros que na quarta-feira diziam que iriam ao dentista e não voltavam mais naquela semana.

“E teve um caso engraçado, Clara, que depois eu até ri da situação. Na primeira semana de trabalho do Gelin, eu falei para ele cuidar do portão da obra, daquela lá da Avenida Central. Você sabe como é, eu não queria que ninguém entrasse que não fosse funcionário, pois tem toda a questão dos equipamentos de segurança e do material. Então chegou o seu Geninho, sócio da construtora, não é que ele não o deixou entrar sem antes ir me chamar?”, Ruan conta rindo. “Seu Geninho ficou indignado. Mas o Gelin estava certo. Ele não sabia quem era o seu Geninho. Ele seguiu minhas ordem à risca”

Clara ri da situação e comenta que os acha um pouco tímidos, e que isso atrapalha um pouco a integração com os demais funcionários. Os brasileiros são mais extrovertidos. Ela pensa que talvez isso ocorra devido a dificuldade deles com o idioma. Por outro lado, os brasileiros ficam desconfiados pelo fato de os haitianos serem mais sérios e também porque eles chegam aqui falando duas a três línguas. Clara pensa que isso assusta um pouco os outros empregados, principalmente aqueles que não têm muitas qualificações.

“Ah, sim, Clara, nem tudo são flores. Outro dia precisei advertir um funcionário haitiano devido a uma contagem errada de materiais. Novamente, por causa da dificuldade com a língua, ele se enganou com os números. Outra situação que ocorreu foi triste”, relata Ruan. “Acho que é muita necessidade no país deles, é de cortar o coração. Outro dia, no almoço eu percebi que o Pierre dividia a marmita dele em 3 partes. Achei estranho e perguntei o porquê. Sabe o que ele me respondeu? ‘Esta aqui é a minha parte, é o que eu preciso para comer e esses dois aqui são para minha família, minha esposa e meu filho, que estão lá no Haiti e, se Deus quiser, um dia os trarei para cá’”.

“Então eu disse para ele que ele tem que se alimentar, que ele precisa ficar forte aqui no Brasil, para poder trabalhar e mandar dinheiro para lá. Aos poucos ele foi entendendo”, completou Ruan.

“Sim Ruan, deve ser muito difícil. Enquanto você me contava essas histórias, pesquisei um pouco sobre o Haiti. Você sabia que depois de um período bem difícil que o país passou decorrente de uma crise política, a ONU instituiu uma missão para a estabilização do país, em que o Brasil participou? E como se não bastassem as dificuldades oriundas da crise, um terremoto devastou a capital e outras regiões do Haiti em 2010, deixando cerca de 230 mil mortos, desabrigando outros 2 milhões e, para completar, um mês depois do terremoto, uma epidemia de cólera se espalhou pelo país causando muitas mortes”

“Não sabia de tudo isso, Clara, mas lembro que havia militares brasileiros nessa missão. O fato é que, apesar de todas essas dificuldades, realmente não tenho do que reclamar dos nossos funcionários haitianos. A qualidade na obra vem melhorando bastante e muito se deve ao trabalho deles. As dificuldades existem, é claro, mas são mais devido à dificuldade com o idioma”, completa Ruan, que se despede e sai para supervisionar uma das obras em andamento.

Entegrasyon: dilèmakekivok (A Integração: Dilemas e Ambiguidades)

Na semana seguinte, Pierre e Gelin vão até a sala de Clara, juntamente com Ruan. Este apresenta à colega a situação:

“Clara, o pai do Gelin faleceu há alguns dias lá no Haiti e agora a mãe está muito doente, ele quer ir visitá-la. O problema é que ele ainda se encontra no período de experiência de três meses de trabalho e não seria possível justificar sua ausência por tanto tempo”

Atenciosa ao problema de Gelin, Clara explica que, pelo fato de ele ter começado a trabalhar recentemente na empresa, ele não tem direito a férias e, para essa ausência de trabalho prolongada, ele não teria direito a remuneração. Enquanto Clara explica para Gelin, Pierre faz a tradução para crioulo. Ele já está acostumado a ser intérprete para seus colegas, pois já está no Brasil há mais tempo. Gelin tem muita dificuldade em entender, principalmente quando Clara lhe explica que a melhor alternativa nesse caso seria a rescisão do seu contrato de trabalho para ele ir viajar.

“E ele poderá voltar para essa vaga?”, pergunta Pierre, preocupado.

Clara e Ruan se entreolham, pois eles também não sabem a resposta. Não poderiam garantir a sua vaga, ele era um funcionário novo, sem experiência e imigrante. Pierre e Gelin ficam confusos. É difícil para eles compreender a situação, já que a legislação trabalhista brasileira é diferente do país deles. No Haiti, o trabalho é informal. Clara reflete e faz a seguinte proposta a Gelin:

“Devido a sua dedicação, nós estamos felizes com seu trabalho e propomos que você possa se ausentar por quinze dias. Haverá ônus pela ausência em sua folha de pagamento. Também faremos o adiantamento do valor que falta para a sua passagem, para que possa ir. Eu soube que seus colegas haitianos contribuíram para a compra, mas que, ainda assim, não foi suficiente, então o ajudaremos”

Gelin suspira profundamente aliviado. Ele está muito agradecido e sai da sala sorrindo. Clara pede que Pierre permaneça na sala e, juntamente com Ruan, lhe comunica que a partir daquele dia ele será o novo encarregado da obra da Quinta Avenida, em Balneário Camboriú. Trata-se de uma obra pequena, com poucos funcionários, em sua maioria haitianos. Será um teste para ver como Pierre se sairá. Pierre chora de emoção pois, como Clara lhe explicou, ele passará a ganhar mais e poderá, finalmente, buscar sua esposa e seu filho no Haiti.

No final da tarde desse mesmo dia, Antônio, um antigo funcionário entra na sala enfurecido. “Você pode me explicar isso, dona Clara! Estou aqui com vocês há anos. Eu faço meu trabalho certinho e vocês me aparecem com essa!”

“Calma, Antônio, não entendo do que você está falando”, fala Clara, assustada.

“Acabei de saber que o Pierre foi promovido! A senhora e o seu Ruan estão de brincadeira comigo, não é mesmo? Queria falar cara a cara com o seu Ruan para dizer poucas e boas para ele, mas ele saiu, me falaram que ele está em outra obra. Por isso vim aqui. Quero deixar claro que aqui com esses macacos eu não trabalho mais! Essa empresa não valoriza a gente da própria terra. Vocês vão dar asas para um haitiano! Vocês vão ver só, qualquer dia desses eles roubam teu emprego, aí eu quero ver. Com essa historinha de que eles são bonzinhos, necessitados, eles são espertos. Falam espanhol, inglês, têm mais estudo que nós. Eu tenho certeza de que eles estão só esperando pra dar o bote em todos nós aqui”

Indignada diante de tamanho preconceito, Clara dá um basta na discussão com Antônio, mandando que se retire da sua sala e se encaminhe ao setor de recursos humenos, onde receberá uma advertência formal. Sua vontade é demiti-lo, porém sabe que ele é importante no que faz, apesar de não ter espírito de liderança e não se destacar como Pierre, é um bom funcionário. Clara espera que os outros empregados não partilhem desses mesmos pensamentos preconceituosos. “Sim, com culturas tão diferentes os conflitos são inevitáveis, mas preconceito e racismo, aí já é outra história”, reflete, enquanto se encaminha a sala do café.

“Preciso de um bem forte ,Marli, hoje o dia já começou difícil”

“Sério, querida?”, fala Marli enquanto lhe entrega a xícara de café. “Você está branca como papel, aconteceu alguma coisa?”

“Ah, às vezes a gente se decepciona com as pessoas”, diz Clara tomando um gole do café, e continua: “Eu fico doida com o preconceito, sabe, racismo esse tipo de discriminação! Não consigo entender como tem gente assim”

“Ah, isso é verdade. Outro dia mesmo aconteceu uma coisa que me deixou bem chateada. Lembra que contei que meu marido conseguiu uns ingressos lá para o Unipraias? Eram vários ingressos, então ele chamou os colegas de trabalho, os haitianos, porque ele sabia que eles não conhecem lá”

Marli solta uma risada divertida, lembrando da cara do cobrador quando viu todos eles entrando felizes da vida, igual a crianças.

“E o povo olha mesmo, os haitianos chamam a atenção, pela cor, eu acho. Imagine mais de dez pessoas pretas, mais eu e o Jorge, que também somos meio queimadinhos. Todo mundo olha. E eles se empolgaram e falavam entre si em crioulo. Eu não entendo nada, mas gosto de ouvir, acho o som bonito. Chegamos no teleférico, estava um dia lindo, estávamos tirando fotos e então aconteceu uma situação horrível. Lá no mirante tinha uma família com um rapaz fotografando duas crianças. Você não imagina o olhar daquele moço para nós. Um olhar tão enojado, sabe, não sei, não tem palavras para dizer, é pior que discriminação, não é ódio, é uma coisa horrível, parecia que ele estava com asco de nós. Clara, nessa hora me bateu uma tremedeira, uma coisa horrível. Por sorte, na empolgação deles, os haitianos nem perceberam nada, mas eu fiquei ali, mortificada de horror”

Marli relata a Clara a situação precária em que muitos haitianos estão vivendo. Devido ao alto custo de moradia da cidade, o salário que eles ganham mal dá para viverem. Muitos sobrevivem de doações, e a tentativa deles de mandar dinheiro para o Haiti é cada vez mais remota.

Clara sai da sala pensando “Realmente precisamos ajudar nossos colegas haitianos”. Seus devaneios são interrompidos pela entrada de Ruan, que já sabendo do caso do Antônio fica indignado:

“Um absurdo! Ainda não estou acreditando que ele fez isso! Está o maior burburinho lá na obra e o pior não é isso, Clara. Acabei de vir da obra da Avenida Brasil. O Ministério do Trabalho foi lá. Os fiscais do Ministério do Trabalho fizeram alguns testes com os haitianos. Perguntaram sobre as normas e eles não entenderam direito. Os fiscais chamaram por mim e o seu Geninho e falaram que os haitianos que trabalham nas obras têm que ter o curso de segurança comprovado. Você sabe, Clara, que o problema é que todos os cursos são em português. E os fiscais deixaram claro que os haitianos que não dominam o idioma não poderão ser considerados aptos a fazerem o curso, logo, não podem receber o diploma e, sem o curso, não podem permanecer no trabalho. Eles foram muito incisivos quanto a isso. Seu Geninho está dando pulos de raiva, você sabe como nosso chefe é. Ele não construiu tudo isso sem esforço, é um homem de fibra e valoriza cada prego, ferro e madeira daqui. E tem um escorpião no bolso quando se fala em gastar”

“Meu Deus! O que vamos fazer?! O que nosso sindicato diz sobre isso?”

“Seu Geninho foi lá agora. Ele me ligou dizendo que a sugestão é que seja contratado um tradutor para os cursos e que haja cartazes em todos os lugares das obras no idioma dos haitianos, o crioulo. Mas isso o seu Geninho não quer ouvir falar. Ele me disse que isso vai lhe custar muito dinheiro! Xi, falando nisso...” murmura Ruan enquanto seu Geninho passa pela porta e entra na sala de Clara, gesticulando muito.

“Não vou gastar nem um centavo com isso! Não vou mudar nada na empresa e, quer saber de uma coisa? Não quero ver nenhum haitiano nas minhas obras! Clara, agora é problema seu, resolva o que fazer. Mande todo mundo embora e contrate brasileiros, somente brasileiros!”, grita seu Geninho, já ficando vermelho, tamanha é sua raiva.

Clara fica parada no meio da sala, aflita e se sentindo sem chão.

“Como posso decidir pela vida de tantas pessoas?! Preciso encontrar uma solução! Não posso permitir que a demissão dos haitianos ocorra dessa maneira e, ao mesmo tempo, preciso achar um jeito de contornar essa situação com seu Geninho. Meu Deus, o que fazer?”

Notas de Ensino Posicionamento do Caso

As informações contidas no caso foram idealizadas para a utilização em cursos de graduação, pós-graduação e MBA em Administração de Empresas e Administração de Recursos Humanos nas disciplinas de Gestão de Recursos Humanos, Comportamento Humano nas Organizações e Cultura Organizacional. Optou-se por trabalhar questões pertinentes ao cotidiano das equipes multiculturais. No entanto, o caso permite o desenvolvimento de reflexão em outras áreas de atividade empresarial, como em Políticas Públicas, Responsabilidade Social e Ética Empresarial.

Objetivos Educacionais

Pretende-se desenvolver nos participantes:

  1. 1. (1) Familiaridade com a realidade empresarial nas questões pertinentes às atribuições do cargo de gestor de recursos humanos (contratação, gestão de pessoas), especialmente em equipes multiculturais;

(2) Análise e discussão dos desafios vivenciados em uma equipe multicultural;

(3) Debater possíveis soluções para inserção de imigrantes no âmbito organizacional;

(4) Análise reflexiva e busca de estratégias para resolução do caso.

Fontes de Dados

O enredo do caso é fictício, porém, as diversas situações foram baseadas na coleta de dados de fontes primárias (entrevistas semiestruturadas com gerentes de recursos humanos de quatro construtoras da região e dois funcionárias do Sindicato da Construção Civil de Balneário Camboriú, em Santa Catarina, e com dois imigrantes haitianos, além de duas pessoas que possuem contato com estes). Utilizou-se também de fontes secundárias (pesquisa bibliográfica sobre os temas abordados).

Tópicos Pedagógicos

A proposta de estudo do caso pode ser organizada da seguinte forma:

1.     a) Leitura e análise individual realizada pelo aluno antes da aula;

b) Análise e discussão do caso, com a resolução das questões em pequenos grupos na sala de aula à luz da teoria (tempo sugerido 1 hora);

c) Discussão e fechamento em sessão plenária, organizada pelo professor (tempo sugerido 1 hora).

Questões para discussão

As questões apresentadas foram desenvolvidas visando estimular a reflexão junto aos estudantes, de forma a melhor estruturar o problema e produzir uma resposta mais analítica do que descritiva. Dentre as perguntas mais relevantes que poderiam ser formuladas para os alunos, sugerem-se:

  1. 1. 1) Identifique, de acordo com o texto, quais os principais desafios vivenciados em uma equipe multicultural, tanto do ponto de vista do imigrante quanto do ponto de vista do gestor (sugere-se montar um quadro).

2) De acordo com os itens apontados na questão anterior, indique possíveis soluções para melhorar o cotidiano da equipe multicultural, de acordo com a literatura sugerida. Sugere-se que a turma seja dividida em duas equipes, uma com os desafios do ponto de vista dos haitianos e a outra, com o ponto de vista dos brasileiros, com o objetivo de realizar uma discussão.

3) Como a teoria de gestão de Recursos Humanos aborda os aspectos ligados à socialização e ao indivíduo estrangeiro?

4) Considerando os desafios da equipe multicultural, bem como as políticas de gestão de recursos humanos, quais seriam as possibilidades de Clara resolver a situação com o melhor resultado possível aos envolvidos?

Análise do caso e conexão com a literatura

Resposta da Questão 1:

Figura 1: Principais desafios vivenciados em uma equipe multicultural

Principais desafios vivenciados em uma equipe multicultural

Do ponto de vista do gestor

Do ponto de vista do imigrante

Dificuldades na integração

“Eles são um pouco tímidos. Isso atrapalha, às vezes, a integração com os demais funcionários. Acho que, por causa da dificuldade no português, né, e também tem uma [questão adicional], eles chegam aqui, são sérios, falam duas a três línguas, isso assusta um pouco os outros empregados”

Dificuldades na integração derivada do abalo emocional vivenciado

“A chegada ao país foi complicada, passou por privações, fome e pela exploração de coiotes” “Chegando ao Acre não tinha para onde ir, não tinha acolhimento, não havia onde dormir”

Falta de conhecimento sobre o imigrante

“Você vem da África, Pierre?”

Falta de conhecimento do país

“Pierre tinha pouco conhecimento sobre o Brasil antes de chegar aqui” “Da economia [tinha] pouca informação, nem a moeda brasileira conhecia”

Desconhecimento do idioma

“O que pega mesmo é a língua” “Os haitianos têm que ter o curso de segurança comprovado e, como os cursos são em português, aqueles haitianos que não dominam o idioma não poderão ser considerados aptos, não podem receber o diploma e, sem o curso, não podem permanecer no trabalho”

Desconhecimento do idioma

“Português ainda lhe causa estranhamento”

Falta de comprovação profissional

“Uma pena um engenheiro ter que trabalhar como servente, mas como comprovar a qualificação se o diploma aqui [no Brasil] não representa nada e a carteira profissional, por ser expedida no Brasil, está em branco?”

Falta de reconhecimento profissional

“Seu diploma de engenheiro civil ainda não tem validade no Brasil”

Contextos diferentes

“É muita necessidade, né, no país deles”

Saudades, ausência da familia

“Vou trazer minha esposa e meu filho no mês que vem”

Preconceito racial

“Preconceito e racismo, aí já é outra história”.

Preconceito racial

“[…] esses macacos”.

Diferenças nas legislações

“ […] foi difícil ele compreender, já que a nossa legislação trabalhista é diferente e, no Haiti, o trabalho é praticamente todo informal”

Diferenças culturais

“Com culturas tão diferentes, os conflitos são inevitáveis”

Resposta da Questão 2:

As dificuldades na integração, na maioria das vezes, ocorrem devido ao desconhecimento mútuo (falta de conhecimento sobre o imigrante, o país e as diferenças culturais). Nesse sentido, Adler (2002) observa que a criação de estereótipos surge muito mais de uma visão distorcida da cultura do outro do que pela percepção de características reais. Nesse caso, faz-se necessário que os indivíduos reconheçam que todos os comportamentos apresentam um significado por meio da visão daquele que está tendo um determinado comportamento e que a lógica e a racionalidade são culturalmente relativas. Os “estranhos”, na modernidade, seriam aqueles que “[...] não se encaixam no mapa cognitivo, moral ou estético do mundo” (Bauman, 1998).

Embora a diversidade dificulte que se atinja um consenso, uma vez que em equipes homogêneas há facilidades em compreender o que os outros estão tentando dizer, em equipes multiculturais as dificuldades de percepção (contextos diferentes), de comunicação (desconhecimento do idioma) e de interpretação surgem constantemente, devido ao fato de os membros dessas equipes possuírem expectativas diferentes, onde é mais demorada a assimilação de informações relevantes e surge o aumento da ambiguidade, da complexidade e da confusão (Chevrier, 2000).

As dificuldades enfrentadas pelos indivíduos quando se deparam com a inserção em culturas diferentes (emocionalmente abalados pelos históricos de sofrimento vivenciados, a falta de comprovação e reconhecimento profissional, com diferenças nas legislações, a saudade e a ausência da família e o preconceito racial) podem ser identificadas como choque cultural, ou seja, ocorre uma reação frente ao impacto de uma nova experiência cultural (De Cieri, Dowling, & Taylor, 1991), que os remete a uma experiência psicológica tida como sofrida e dolorosa, fazendo os indivíduos imergirem na confusão, na insegurança e na desorientação a respeito de si mesmos e do seu mundo, do que lhes é conhecido (Freitas, 2000), gerando um impacto tanto social quanto físico de um ambiente classificado como novo e diferente, sendo uma desorientação psicológica resultante da incompreensão dos sinais de outra cultura (Hofstede, 2001). O medo de violar as leis, regulamentos, códigos de comportamento e costumes culturais pode gerar nas pessoas que se encontram em ambientes não familiares mal estar ou ansiedade (Lii & Wong, 2008).

Essas interações entre os indivíduos estão muito presentes nas organizações enquanto sistema social e, inseridos em seu contexto, buscam preservar uma identidade para manter a sobrevivência e, assim, desenvolvem uma estrutura normativa (valores, normas e expectativas de papéis, padrões esperados de comportamento e interação) e uma estrutura de ação (padrões reais de interação e comportamento) originada, sobretudo, nas posições dos gestores (Zanelli, 2003). Motta e Vasconcelos (2002) observam que, para desenvolver-se e sobreviver, sem minimizar aspectos das ações dos agentes organizacionais, as organizações necessitam adaptar-se ao ambiente em que estão inseridas e manter algum tipo de coerência interna.

Entretanto, quando há gestão cultural pelos gestores da organização, os profissionais podem formar equipes geradoras de melhores resultados, uma vez que a convivência entre diferentes culturas favorece o desenvolvimento da heterogeneidade de opiniões quando há sensibilidade, tolerância e respeito pelas diferenças (Bueno & Freitas, 2015; Freitas, 2008).

Resposta da Questão 3:

Importante observar que a vinda de migrantes haitianos não se caracteriza como fenômeno de expatriação, que em estudos organizacionais é o termo mais cunhado, pois a expatriação é um tipo de migração caracterizado pela transferência de um profissional de um país para outro, a fim de exercer determinada função dentro de um período predefinido, desenvolvido a partir de um contrato formal que estabelece em que condições específicas a qual a transferência se dará (Caligiuri & Di Santo, 2001; Freitas, 2009; Homem & Tolfo, 2008).

No caso do Haiti, o Brasil foi apontado pela Organização das Nações Unidas (ONU) como líder de uma missão com objetivos pacificadores no país após um período de crise política, que culminou na deposição do então presidente Jean-Bertrand Aristide, onde foi instituída a missão em 30 de abril de 2004, denominada Missão das Nações Unidas para a estabilização do Haiti, conforme Alessi (2013). Por esse motivo, lá se encontravam militares brasileiros quando em 12 de janeiro de 2010, um terremoto devastou a sua capital, Porto Príncipe, e outras regiões do Haiti, deixando cerca de 230 mil mortos, ferindo outras 300 mil pessoas e desabrigando outros 2 milhões. Em outubro de 2010, uma epidemia de cólera se espalhou pelo país causando 4.000 mortes na população da ilha caribenha (Lima & Simões, 2012).

Em 2012 o Conselho Nacional para Refugiados (CONARE) atribuiu à situação destes como migrantes oriundos de situações humanitárias e, devido a essa proximidade inicial com o Brasil, entraram no país cerca de 30.000 haitianos de forma legal e ilegal, desde o terremoto de 2010 até meados de 2014 (Alessi, 2013; Conselho Nacional de Imigração, 2014). Em 13 de janeiro de 2012 foi publicada a resolução normativa número 97 do Conselho Nacional de Imigração (CNIg) sobre a concessão de vistos permanentes a cidadãos haitianos, e prevê que, ao nacional do Haiti, poderá ser concedido o visto permanente por razões humanitárias, condicionado ao prazo de cinco anos (Alessi, 2013; Ministério do Trabalho e Emprego - MTE, 2014). A imigração foi e tem sido importante para as economias dos países que recebem estrangeiros, especialmente quando os imigrantes substituem os trabalhadores locais que assumem postos de trabalho mais qualificados, e que sem a flexibilidade fornecida pela imigração, a tendência seria o desenvolvimento de gargalos de produção (Castles & Miller, 1998).

As dificuldades enfrentadas pelos indivíduos quando se deparam com a inserção em culturas diferentes podem ser identificadas como choque cultural, ou seja, ocorre uma reação frente ao impacto de uma nova experiência cultural (De Cieri, Dowling & Taylor, 1991), que o remete a uma experiência psicológica tida como sofrida e dolorosa, fazendo o indivíduo imergir na confusão, na insegurança e na desorientação a respeito de si mesmo e do seu mundo, do que lhe é conhecido (Freitas, 2000), gerando um impacto tanto social quanto físico de um ambiente classificado como novo e diferente, sendo uma desorientação psicológica resultante da incompreensão dos sinais de outra cultura (Hofstede, 2001). O medo de violar as leis, regulamentos, códigos de comportamento e costumes culturais pode gerar nas pessoas que se encontram em ambientes não familiares mal-estar ou ansiedade (Lii & Wong, 2008).

A diversidade pode dificultar atingir um consenso, uma vez que em equipes homogêneas há facilidade em compreender o que os outros estão tentando dizer, enquanto em equipes multiculturais as dificuldades de percepção, de comunicação e de interpretação surgem constantemente, uma vez que os membros dessas equipes possuem expectativas diferentes, onde é mais demorada a assimilação de informações relevantes e surge o aumento da ambiguidade, da complexidade e da confusão (Chevrier, 2000). Assim, quando a gestão da diversidade cultural é negligenciada na organização, isso pode acarretar sérios problemas à equipe (Craide & Silva, 2012) e, quando há gestão cultural pelos gestores da organização, os profissionais podem formar equipes geradoras de melhores resultados, uma vez que a convivência entre diferentes culturas favorece o desenvolvimento da heterogeneidade de opiniões quando há sensibilidade, tolerância e respeito pelas diferenças (Bueno & Freitas, 2015; Freitas, 2008).

O sucesso no desenvolvimento de uma equipe multicultural depende de como são tratados alguns aspectos, como as diferenças de personalidades dos indivíduos que compõem a equipe; a comunicação, tanto entre eles quanto entre a equipe e a organização; como se gerencia a resolução de conflitos e como se caracteriza a liderança da equipe. Também devem ser considerados os aspectos que são inerentes à relação intercultural, como a influência da cultura nacional, a convergência de objetivos, o idioma e o lugar, os vínculos com a organização, o reconhecimento e as definições de hierarquia e igualdade, sendo necessário observar alguns requisitos de âmbito individual que precisam ser perseguidos, como o autoconhecimento, a tolerância para as diferenças, a vontade de conhecer a cultura dos outros e ter abertura para aprender (Finuras, 2003).

Para um funcionamento eficiente das equipes multiculturais, deve-se utilizar a diversidade para gerar outras perspectivas, novas definições de problemas, novas ideias e alternativas de ações e soluções (Adler, 2002). Vidal, Valle e Arago’n (2007) observam a importância da organização em adotar práticas na cultura organizacional, visando auxiliar o ingresso de pessoas com experiências culturais distintas.

No entanto, a forma de redução de riscos e fracassos pode ser fruto da compreensão dos aspectos que afetam os costumes e as maneiras dos indivíduos pensarem e agirem em suas vidas e no seu trabalho. A gestão deverá estar atenta a essas relações dos indivíduos e das equipes multiculturais, que gerará a necessidade de desenvolver habilidades para a sua coordenação, onde a aprendizagem será constante, havendo necessidade de aprender novos códigos culturais, respeitando o que lhe é novo e diferente, e aprimorando a comunicação. Sendo que essas exigências de reestruturações permanentes resultam num aumento do nível de flexibilidade e, consequentemente, maior crescimento organizacional e de uma mentalidade intercultural (Freitas, 2008).

Questões legais a serem observadas para a contratação de estrangeiros, principalmente que pela empresa interessada na contratação permanente ou temporária, dizem respeito à solicitação de autorização de trabalho junto à Cordenação-Geral de Imigração (órgão do Ministério do Trabalho e Emprego), além disso, só poderão ser contratados estrangeiros que possuam cadastro no Programa Integração Social (PIS) ou no Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PASEP), bem como o cadastro de pessoa física (CPF). Assegurados esses dois critérios, o estrangeiro tem todos os direitos legais assegurados aos brasileiros (Sebrae, 2018).

Resposta da Questão 4:

Clara pode buscar o Sindicato da Indústria da Construção Civil (Sinduscon) para saber como as outras empresas estão solucionando essa questão, observando se algumas demitiram e não contrataram mais haitianos, outras contrataram somente os que falavam português e outras ainda continuaram com as contratações e colocaram um haitiano com domínio de português para que este atuasse como “tradutor informal” do restante da equipe. Escolhendo esta última ação, Clara a apresenta ao seu chefe. Após conversar com alguns haitianos e saber que eles estão fundando uma associação de imigrantes, ela pode ir em busca de mais informações e participar das reuniões onde, juntamente com outras pessoas, pode conseguir cursos de idiomas e cartilhas com as leis trabalhistas em português, para que mais haitianos passem a dominar a língua portuguesa.

Conhecendo com mais profundidade a cultura haitiana, Clara pode organizar cursos na empresa, mostrando a realidade vivida por esses imigrantes e também divulgar a cultura brasileira para os associados, além dos funcionários da empresa, disseminando o conhecimento e buscando minimizar o preconceito e a distância cultural.

Sugestão de leitura complementar: Cultura organizacional e gestão equipes multiculturais

A construção de um conceito “completo” de cultura incorre em escolher um caminho e opta por defender o conceito essencialmente semiótico, acreditando que a cultura é a teia de significados e análises construídas pelo homem, e não é passível da criação de leis, mas uma ciência interpretativa, à procura de significado (Geertz, 2008), ou ainda, apresenta-se como “subjetividade objetivada” pelo esforço para entender o modo como as ações individuais podem ter validade coletiva e como as múltiplas interações entre indivíduos podem construir “uma realidade dura e implacável”, tornando-se uma ferramenta de mudança (Bauman 2002).

Independente dessas considerações iniciais, a partir da década de 1980, no Brasil, o conceito de cultura foi incorporado aos estudos envolvendo processos de gestão nas organizações. Houve certa popularização do conceito, imediatamente adotado em abordagens prescritivas. Essa difusão do conceito apresentou equívocos teóricos e metodológicos. A apropriação do tema pela Administração nem sempre respeitou a essência do conceito e desprezou os debates promovidos no âmbito das Ciências Sociais (Barbosa, 2002; Bertero, 2009; Freitas, 2007; Mascarenhas, 2002).

A maioria das apropriações envolvendo cultura nas organizações levou ao entendimento de que culturas poderiam ser desenvolvidas e gerenciadas a partir dos interesses empresariais, imaginando ser possível dotar as organizações de culturas “fortes” na busca do diferencial competitivo (Barbosa, 2002; Mascarenhas, 2002). As interpretações funcionalistas que envolvem transformações sociais, como manejar ou administrar, ou mesmo gerenciar a cultura de uma empresa, estiveram vinculadas a concepções evolucionárias, visando à internalização de valores no âmbito organizacional para promover expectativas de conquistas de espaço no mercado (Giddens, 2001).

A abordagem funcionalista transforma, dessa forma, um dos conceitos com mais credibilidade no âmbito das Ciências Sociais, em especial da Antropologia, num conjunto difuso de apropriações que atendem a uma racionalidade sem a devida consistência teórica. Sainsaulieu e Kirschner (2006), em abordagens não funcionalistas, valorizam aspectos nem sempre contemplados pelo funcionalismo, compreendendo as organizações como realidades humanas vivas, produzindo solidariedade, modos de vida, cultura, etc. Nesse aspecto, os haitianos não necessariamente se adaptariam, mas transformariam os cotidianos das organizações como agentes efetivos de mudanças.

O estudo de Hofstede (2001) observa cinco dimensões culturais: distância de poder, aversão à incerteza, individualismo, masculinidade e orientação de longo prazo. A dimensão individualismo é definida como o grau em que as pessoas de um país preferem agir como indivíduos e não como membros de grupos. O individualismo representaria um quadro social em que as pessoas devem cuidar de si mesmas e de seus familiares somente.

A distância de poder é definida como a extensão em que uma sociedade aceita o fato de que o poder nas instituições e nas organizações é distribuído de forma desigual. Seria a medida que os subordinados não são ouvidos para expressar discordância com seus supervisores, bem como não são envolvidos no processo decisório. A aversão à incerteza é definida como a medida que uma sociedade se sente ameaçada por situações incertas e ambíguas e tenta evitar essas situações, proporcionando maior estabilidade, estabelecendo regras mais formais, sem tolerar desvios de ideias e comportamentos e acreditando em verdades absolutas.

Já a dimensão de masculinidade é definida como a medida que os valores dominantes na sociedade são considerados masculinos. A masculinidade é o grau em que valores como assertividade, desempenho, sucesso e competição prevalecem sobre a qualidade de vida, mantendo relações pessoais calorosas e solidárias. A orientação de longo prazo refere-se a valores orientados para o futuro, como persistência, economia e orientação de curto prazo refere-se a valores orientados para o presente, como o respeito pela tradição e o cumprimento obrigações sociais. Cada país apresenta em sua cultura diferentes níveis para as dimensões observadas, o que justifica a desigualdade na tomada de decisão e nas relações.

Os problemas enfrentados pelas equipes multiculturais dizem respeito às percepções, como a criação de estereótipos, os quais, na maioria das vezes, surgem de uma visão distorcida da cultura do outro do que pela percepção de características reais, nesse caso se faz necessário que os indivíduos reconheçam que todos os comportamentos apresentam um significado por meio da visão daquele que está tendo um determinado comportamento e que a lógica e a racionalidade são culturalmente relativas, ou seja, dois grupos que diferem culturalmente não veem o mundo da mesma maneira e, juntamente com os modelos mentais, os valores, os interesses e a cultura, agem como filtros que levam a distorcer, bloquear e criar aquilo que se escolhe para ver e ouvir (Adler, 2002).

Os “estranhos”, na modernidade, seriam aqueles que “[...] não se encaixam no mapa cognitivo, moral ou estético do mundo” (Bauman, 1998), o que não ocorreria no mundo contemporâneo, em que a aceitação do “outro” torna-se essencial em um contexto plural e com culturas multifacetadas. Haitianos no Brasil, neste caso, compõem um desafio para analisarmos um contexto histórico em que, a exemplo da Europa, e mais recentemente em Paris, na França, confrontos religiosos e intolerância proporcionaram um ambiente de conflitos permanentes.

Sugere-se uma biografia complementar que dará respaldo para um debate acerca da ética na gestão de Recursos Humanos nas organizações:

Almeida, Filipe Jorge Ribeiro de. (2007). Ética e Desempenho Social das Organizaçőes: um Modelo Teórico de Análise dos Fatores Culturais e Contextuais. Revista de Administração Contemporânea, v. 11, n. 3, Jul.- Set.

Chanlat, Jean-François. (1992). O caminho de uma nova ética das relações nas organizações. Revista de Administração de Empresas. São Paulo 32(3), 68-73, Jul.-Ago.

Zylbersztajn, Décio. (2002). Organização Ética: um Ensaio sobre Comportamento e Estrutura das Organizações. Revista de Administração Contemporânea, v. 6, n. 2, Maio-Ago.

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