Pensata
Gestão Pública no
Brasil, Conquistas Recentes e Dilemas Presentes
Evelyn Levy evelyn.levy@uol.com.br
Comitê Científico do
Congresso do Conselho Nacional de Secretários de Estado da Administração, Brasil
Gestão Pública no Brasil, Conquistas Recentes e Dilemas
Presentes
Administração
Pública e Gestão Social, vol.
11,
núm. 4, 2019
Universidade Federal de Viçosa
Ao que tudo indica, encontramo-nos mais uma vez em um momento de
inflexão histórica. O paradigma, vigente de modo mais ou menos abrangente desde
o final da Segunda Guerra, parece ter se progressivamente diluído nos países
ocidentais. O impacto das novas tecnologias e importantes mudanças geopolíticas
trouxeram consequências imprevistas nos plano social, cultural e econômico.
Essa porção do globo vive hoje uma fase de baixo crescimento econômico,
desigualdade crescente, mercados de trabalho em profunda transformação, grande
insatisfação dos seus cidadãos com os serviços públicos e forte desconfiança
com respeito à democracia.
Ainda que com características que lhe são específicas, o Brasil
não escapa desse processo mais amplo: tem que se confrontar com os desafios em
que a competição internacional se tornou mais acirrada, assentada em novíssimas
bases, tendo porém um “passivo” não resolvido, que se traduz nas históricas e
profundas desigualdades sociais. Tem pois de operar em meio a um ambiente
econômico recessivo que acentua sua crise fiscal e fazer frente aos conflitos
sociais que se aprofundam. Todas essas “falhas de governança coletiva” impõem
severos desafios à Gestão Pública.
Após o período daspiano, em que se fundaram as bases de uma
administração pública profissional – de concretização restrita - e o período
militar, que gestou o decreto-lei 200 e o complexo de empresas estatais, que
objetivaram modernizar a infraestrutura do país, a Gestão Pública tomou novos
contornos com a Constituição de 1988. Refletindo os movimentos em favor da
democracia e da justiça social, a Carta Magna procurou fortalecer a Gestão
Pública ao: promover a participação e a descentralização de responsabilidades
aos estados e municípios, colocando-as mais próximas aos cidadãos. Ao mesmo
tempo, impôs a realização de concursos públicos – em combate ao clientelismo
ainda muito disseminado- e o planejamento governamental, através da adoção do
Plano Plurianual/PPA, atrelado ao orçamento. A criação e proteção de uma
burocracia profissional para todas as atividades estatais também se fizeram
presentes nas regras da estabilidade e da ampla previdência .
Os anos 90 iniciaram em meio a uma profunda crise fiscal, que se
revelava através de elevadíssimos índices de inflação. As respostas advindas
por parte do primeiro governo eleito após o período militar – Collor – foram de
denegrir o funcionalismo público e responsabiliza-lo pelos constrangimentos
fiscais. Com a renúncia do presidente, arrefecem os movimentos contrários à
administração pública.
O governo FHC, iniciado em 1995, procurou dar uma resposta ampla
e efetiva para os grandes desafios da administração pública brasileira:
torna-la despolitizada e profissional, torna-la eficiente, eficaz e menos
dispendiosa, democrática e transparente. A “administração gerencial”, proposta
pelo Ministério da Administração e Reforma do Estado/MARE, sob a tutela do
Ministro Luiz Carlos Bresser Pereira, propunha uma nova estrutura para o Estado
Brasileiro:
·
agências executivas, organizações estatais responsáveis por
serviços exclusivos de Estado
·
organizações sociais/OSs, ou seja, organizações do terceiro
setor, responsáveis pela oferta de serviços não exclusivos, mas determinantes
para o desenvolvimento da nação, tais como Educação, Saúde, Cultura, Meio
Ambiente e outros.
Agências e OSs teriam maior autonomia administrativa e recursos
transferidos em troca do alcance de resultados previamente acordados com o
núcleo estratégico. No que diz respeito aos regimes de trabalho, as OSs
implicavam em contratos CLT, enquanto no núcleo estratégico e nas agências
prevaleceriam os funcionários estatutários, organizados nas carreiras de
Estado. A maior parte das mudanças propostas no “Plano Diretor da Reforma do
Estado” foram incluídas na EC 19/98, embora alguns de seus artigos não tenham
jamais sido regulamentados; tal é o caso da demissão por insuficiência de
desempenho e do emprego público.
A “reforma gerencial” constituía portanto uma resposta aos
reclamos da baixa resolutividade da administração pública, procurando ao mesmo
tempo contornar os elevados custos que representavam as regras abrangentes de
contratação e aposentadoria do funcionalismo. Os governos FHC acabaram por
avançar pouco na implementação dessas ideias, que representavam uma mudança
bastante profunda frente à tradição daspiana ainda prevalecente.
A persistente crise fiscal, a despeito da conquista da
estabilidade monetária, induziu principalmente os estados a adotarem uma grande
parte dos postulados da “reforma gerencial”, a partir de 2003. A adoção dos
novos modelos organizacionais, não- estatais, se espraiou pela maior parte dos
estados e muitos municípios, em setores tais como a Saúde principalmente, mas
também Cultura, Assistência Social e Meio Ambiente. Um grande número de
estados, e também municípios, criou carreiras horizontais de “gestores”.
Com a melhoria das finanças públicas foi possível promover
muitos concursos públicos. Entre 1995 e 2016 o número de civis e militares no
nível federal aumentou 25%, totalizando 1,2 milhão; no nível estadual o
crescimento foi de 28%, passando para 3,7 milhões e no nível municipal o
crescimento foi de 175%, chegando a 6,5 milhões (IPEA, 2018). O crescimento
exponencial nos municípios representou, em larga medida, a pretendida
descentralização e ampliação dos serviços educacionais (como a pré-escola) e de
saúde ( como os equipamentos de atenção básica). Não por acaso, o maior número
de servidores concursados, no período, foi de professores.
Uma das marcas do período foi a ampliação do número de “escolas
de governo”, para a educação continuada dos servidores, em paralelo ao aumento
muito significativo do número de cursos de graduação e pós-graduação em
Administração Pública. Pode-se observar um nítido avanço na qualificação dos
servidores, especialmente nos níveis federal e estadual. Ao mesmo tempo, a
produção de conhecimento nesse campo – do qual essa revista é uma evidência –
ganhou uma escala nunca vista. Muitos desses entes também induziram a maior
participação dos servidores na melhoria dos serviços, por meio de prêmios de inovação.
A adoção das novas tecnologias de informação e comunicação foi
importante, embora inicialmente mais intensa do que no período subsequente.
“Lojas do cidadão”, concentrando a oferta de serviços burocráticos em mesmos
espaços físicos, se disseminaram em vários estados. Houve avanços no campo das
compras governamentais, ensejando economias consideráveis pela adoção, por
exemplo, do modelo “pregão”. Menos relevantes foram os avanços no âmbito do
planejamento e na área orçamentária, especialmente na esfera federal.
O período que se seguiu à formulação e à implantação, ainda que
parcial, da “reforma gerencial”, deixou um legado importante, mas ambivalente:
de modo muito mais amplo, uma burocracia selecionada por concursos públicos e
incomparavelmente mais qualificada. Uma visão um pouco menos burocrática da
gestão de pessoas. Melhoria nos processos de trabalho, especialmente pela
utilização das TICs; uma internalização do conceito de “resultados”; avanços na
transparência das informações governamentais.
Entretanto, por variados motivos, a oferta de serviços públicos
passou a ser bastante criticada, dando origem a vigorosas manifestações
sociais, a partir de 2013. Investigações policiais, facilitadas pelas novas
legislações e instrumentos disponibilizados, expuseram um amplo processo de
corrupção, aprofundando o descontentamento da população com a administração
pública. O declínio das receitas governamentais, em virtude da queda de demanda
por commodities, tornou gravíssimo o déficit fiscal, especialmente impulsionado
pela previdência inclusive pública. O padrão de “presidencialismo de coalizão”,
assentado na entrega de cargos comissionados para partidos da base, facilitou a
ocupação de cargos gerenciais por quadros nem sempre capacitados para tal fim.
Raras foram as políticas públicas que estabeleceram resultados a serem
alcançados, como a Educação Fundamental, através do IDEB. Em razão da
desconfiança da sociedade com a lisura das atividades governamentais, os
controles exacerbaram sua ação, a ponto de inibir a gestão, levando-a com
frequência à parilisia.
Às vésperas das eleições majoritárias de 2018, um grupo de
especialistas em Gestão Pública, com experiência em diversos de seus aspectos e
operando em diferentes locais do território nacional, ofereceu à sociedade e
aos candidatos um rol de sugestões para a melhoria da administração pública[1].
Entre suas recomendações, podemos destacar:
·
a reestruturação do planejamento governamental
·
o aperfeiçoamento dos processos de coordenação governamental
·
a qualificação da elaboração e gestão de projetos
·
a promoção da inovação
·
a seleção de dirigentes públicos
·
a flexibilização de regras na área de RH, inclusive a criação do
emprego público
·
o fomento de parcerias
·
o aprofundamento do governo digital
·
o uso estratégico das compras governamentais
·
o avanço da digitalização do serviços e processos
·
o aumento da transparência, da participação e do controle
social.
Dentre os itens acima elencados, vale notar que a seleção de
dirigentes públicos mereceu especial atenção por parte da sociedade civil, que
passou a apoiar governos – especialmente estaduais – para identificar quadros
competentes, dentro e fora da administração pública, para ocupar postos
gerenciais estratégicos para o andamento das principais políticas públicas.
Tanto o Congresso, quanto o Executivo Federal elaboram, nesse
momento, propostas de requalificação da administração pública. Assim, o Senado
elaborou o novo marco das agências reguladoras, colocando obstáculos às
indicações políticas. A Câmara dos Deputados discute a nova lei de licitações,
na qual se insere uma nova modalidade para aquisições de TI: o diálogo
competitivo. A Câmara também discute os “super-salários”, salários acima do
teto.
De acordo com “Congresso em Foco”(16/8/2018), o Governo
Bolsonaro prepara uma reforma administrativa, a ser submetida após a aprovação
das reformas da previdência e tributária. Essa reforma, supostamente, deverá
enfrentar a rigidez das regras da gestão de pessoas:
·
apoiando as contratações temporárias
·
tornando as carreiras horizontais e facilitando a mobilidad
·
diminuindo o número de carreiras, estruturas e órgãos
·
apoiando a criação de fundações privadas, as OSs, os Serviços
Sociais Autônomos, vinculados através de contratos de gestão.
Em conclusão, é possível afirmar que, embora a atual conjuntura
apresente grandes desafios à administração pública, as décadas passadas criaram
uma base de pessoas, processos e conhecimentos que permitiriam à Gestão Pública
se tornar uma força motriz para o desenvolvimento nacional. Serão necessários
forte liderança e alinhamento entre atores políticos e sociedade para
estabelecer rumos e assim demandar o desempenho da máquina pública.
Notas
1 O documento “Um Novo
Patamar para a Gestão Pública Brasileira” foi apresentado em um Seminário no
Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, no dia 20 de setembro de 2018. Elaborado
por 17 especialistas, o texto está em diversas páginas e links da internet,
como este do IEA: http://www.iea.usp.br/eventos/documentos/um-novo-patamar-para-a-gestao-publica-brasileira/view
.
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